A legislação sobre aborto no Brasil e o impacto de projeto de lei na vida de meninas e mulheres negras

Maria Sylvia de Oliveira, advogada, diretora e coordenadora da área de Gênero, Raça e Equidade, de Geledés – Instituto da Mulher Negra. Kátia Mello, jornalista e mestre em Estudos Africanos pela Universidade de Birmingham, Reino Unido. Este texto foi publicado originalmente no site do Portal Geledés, no dia 15 de junho de 2024, e gentilmente cedido para reprodução no WBO. 


O projeto de Lei 1904/24 é mais uma da longa lista de violências perpetradas e toleradas pelo Estado brasileiro contra as mulheres e meninas. Foram apenas 24 segundos para que a Câmara dos Deputados aprovasse, em regime de urgência, a tramitação do projeto que visa equiparar o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, mesmo quando a gravidez seja resultante de estupro, que no Brasil ocorre a cada 8 minutos.

De acordo com este projeto, as vítimas de estupro, as mulheres violentadas, estarão sujeitas a penas maiores que a de seus algozes estupradores, uma vez que a legislação atual estabelece para os violentadores a pena máxima de reclusão de 10 anos, podendo a condenação chegar a 12 anos para os casos de estupro de menores de 18 anos e maiores de 14 anos (art. 213, § 1º do Decreto-Lei – 2.848/1940). O anúncio causou indignação em grande parte da sociedade brasileira e não poderia ser diferente com a organização fundada e liderada por mulheres negras há 36 anos.

Em maio passado, Geledés -Instituto da Mulher Negra apresentou relatório ao Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) que analisou a situação dos direitos das mulheres, no Brasil, dentre eles, o direito ao aborto.

O documento apresentado relata que durante a pandemia da Covid -19 houve uma redução de 45% nos serviços que realizavam o procedimento, empurrando meninas e mulheres para serviços clandestinos. Segundo a Pesquisa Nacional sobre Aborto (PNA), 52% das mulheres que abortaram pela primeira vez tinham 19 anos ou menos. Desse total, 46% eram adolescentes entre 16 e 19 anos e 6% tinham entre 12 e 14 anos. 

Dados sobre internações e mortes por aborto inseguro mostram que as mulheres afrodescendentes e indígenas são as mais afetadas. Na última década, 6 em cada 10 mortes por aborto foram de mulheres afrodescendentes. Quando comparadas às mulheres brancas, as mulheres afrodescendentes têm duas vezes mais probabilidade de morrer. Ou seja, o aborto é, foi e sempre será uma questão de saúde pública.

De acordo com Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023, foram denunciados 74.930 casos de estupro – trata-se de um crime subnotificado –, (contabilizados o número total de vítimas mulheres (Art. 213 do Código Penal) e estupro de vulnerável (Art. 217-A do Código Penal) consumados. Os dados informam que 56,8% das vítimas eram negras, meninas e mulheres, que já experimentam as maiores dificuldades para obter assistência do Estado.

Os dados informam, ainda, que 61,4% das pessoas estupradas tinham entre 0 e 13 anos de idade. Nós estamos falando de revitimizar crianças, que serão obrigadas a levar adiante uma gravidez resultante de um crime, cujos algozes, em 86,1% dos casos, são pessoas conhecidas e em 64,4% são seus próprios familiares. 

A situação sobre violência contra as mulheres e meninas no Brasil é de extrema gravidade e o que se vê na Câmara dos Deputados não é apenas um retrocesso na legislação brasileira considerando que o aborto, em razão de estupro, é excludente de ilicitude prevista em nosso Código Penal desde 1940. O que se vê na Câmara dos Deputados é a crueldade do obscurantismo, do fundamentalismo que está em vigor no parlamento. 

O fato de o PL indicar o tempo de gestação, no caso, até 22 semanas para a possibilidade da realização do aborto, não reduz a gravidade da proposta. A grande maioria dos Estados brasileiros ou desativaram os serviços que oferecem acesso ao aborto legal ou criam obstáculos severos à sua realização, inclusive, denunciando e processando criminalmente as vítimas de estupro. 

Ainda é viva em nossa memória as histórias de meninas que, vítimas de estupro, engravidaram, procuraram apoio no judiciário e tiveram seu direito negado. Vale lembrar, por exemplo, o escabroso caso de uma menina de 10 anos, em Santa Catarina, levada ao Poder Judiciário para reivindicar um direito garantido pela legislação brasileira, em que a juíza responsável pelo processo lhe perguntou se não poderia “aguentar só mais um pouquinho”, diante de uma gravidez que poderia lhe tirar a própria vida. A menina foi visivelmente revitimizada pelo Sistema de Justiça, pelas instituições do Estado brasileiro que deveriam protegê-la.

A vida de milhares de mulheres e meninas não pode ser pauta para disputa política de parlamentares, visto que o próprio autor do projeto diz que busca “testar” o Poder Executivo sobre o veto no PL 1904/24, alertando sobre uma promessa de campanha assumida na carta aos evangélicos.

Nenhum país democrático adota como política pública a criminalização de vítimas de estupro. O parlamento, a chamada Casa do Povo, deveria ocupar-se em garantir, uma educação de qualidade para toda a população, fazendo cumprir os mandamentos constitucionais, incluindo educação sexual e respeito. Tristemente, com especial impacto para meninas e mulheres negras, o atual parlamento está completamente dissociado da realidade da vida da grande maioria da população brasileira.


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