A União deve demarcar terra, saúde e educação indígena
Álvaro de Azevedo Gonzaga Kaiowá é indígena da etnia Guarani Kaiowá e autor do Livro Indigenous Decolonialism, além de professor de Direito da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), membro do Parlamento Indígena e do Grupo de Transição do Governo Lula. Este texto foi escrito por ela originalmente para a edição 58 do Boletim Informativo Semanal do WBO do dia 17 de março de 2023. Para acessar e assinar o boletim semanal do WBO em inglês basta inserir seu e-mail no formulário no rodapé desta página.
O Brasil tem como uma de suas características inegáveis uma realidade multifacetada, composta de diferentes cores, raças, etnias, crenças e cosmovisão de vida.
Os povos originários formam um microcosmo próprio dentro dessa realidade. Nós, indígenas, somos formados por 305 diferentes etnias. As mais numerosas são os Tikunas e os Guaranis. Além disso, temos diversas línguas, grande parte delas derivada do mesmo tronco linguístico, como no caso do Guarani, de onde deriva o Kaiowá, entre tantas outras. O modo de vida desses povos também é muito variado. Nós temos, por exemplo, um total estimado de 115 povos indígenas isolados – dos quais 28 estão confirmadamente nesta categoria e 87 ainda estão sob investigação.
O resultado da história do Brasil é inquestionavelmente negativo para os povos indígenas. A sociedade brasileira foi erguida sobre o patrimônio do território dos aproximadamente 4 milhões de indígenas que aqui habitavam. Essa sociedade enriqueceu com o que o Padre Antônio Vieira chamava de “ouro vermelho”. Nesse processo, os povos indígenas receberam – por caridade ou por osmose – alguns dos atributos que hoje são parte essencial de sua cultura.
A integração desses povos não traz, como contrapartida, a independência nem a liberdade, muito menos soluciona seus problemas elementares de sobrevivência hoje em dia. Atualmente, restam terras a serem demarcadas. Mas não é só isso: as terras que já foram homologadas e assentadas como patrimônio da União ainda correm o risco de serem canceladas por meio de alterações legais, sem contar o risco de serem simplesmente invadidas e roubadas para satisfazer os anseios econômicos capitalistas.
A variedade de cores, raças, etnias, crenças e cosmovisão de vida também se manifesta numa variedade de angústias e de lutas. No Norte, os yanomamis precisam de comida para não morrer de fome, enquanto os Barés lutam contra os garimpeiros e madeireiros que mataram Dom Phillips e Bruno na Floresta Amazônica. No Nordeste, os Pataxós lutam pela manutenção de suas terras, em Coroa Vermelha. No Centro-Oeste, os Guaranis lutam pela manutenção da vida para não serem mortos a tiros. No Sul, há o racismo contra os indígenas, como é o caso dos Kaingangs, vítimas de ataques constantes por parte daqueles que questionam seu fenótipo indígena. No Sudeste, está a luta pela terra em contexto urbano e a luta por moradia – muitas vezes, moradia na periferia das cidades.
O desrespeito à cultura e cosmovisão indígenas aparece nas mais variadas formas, incluindo até mesmo crimes, como o etnocídio contra Tanaru, também conhecido como o “indígena do buraco”, que teve seu corpo vilipendiado sob o falso argumento de que se realizaria uma perícia. No fim, teve apenas seus ossos devolvidos para que fossem sepultados fora de todos os ritos de sua etnia – uma etnia que possivelmente foi extinta.
Dos povos isolados chegamos, aos indígenas em contexto urbano, que constituem cerca de 40% do total da população indígena brasileira, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Muitas vezes, esses indígenas em contexto urbano são classificados como pardos. Eles são frequentemente excluídos dos critérios de cotas para os processos seletivos. É comum que sejam subalternizados e afetados pela violência urbana periférica.
A pergunta é: como unir as mais de 30% das etnias em isolamento e os cerca de 40% que estão em contexto urbano? Relembremos o brilhante decolonizador do pensamento, Paulo Freire: “Os divergentes se unem para derrotar os antagônicos”. Entre as divergências indígenas, que são muitas, existem temas que são comuns e nos unem contra os antagônicos.
Em março deste ano, o músico Caetano Veloso invocou o Ato pela Terra, que contou com a presença e com a participação de líderes indígenas importantes, além da participação de tantos outros que, sem conseguir se deslocar a Brasília, deram esse grito unido pela Terra no campo e na cidade.
Já faz mais de 522 anos que nós, indígenas, lutamos pela terra. Temos mais de 522 terras a demarcar e outras 13 que só dependem da assinatura do presidente da República.
A saúde indígena é outra questão que merece demarcação. Temos um grande desafio à frente por causa dos cortes de cerca de 60% do orçamento para 2023 e das dificuldades impostas pela Covid-19.
O primeiro grande desafio é a situação calamitosa dos yanomamis de Roraima, que precisam expulsar os garimpeiros que exploram uma Terra Indígena. São 28 mil indígenas ali e 14 mil deles estão doentes de malária, desnutrição e outras mazelas, cercados por uma população garimpeira de 20 mil indivíduos. Além disso, grupos religiosos ultraconservadores estão presentes neste contexto, beneficiando-se de dinheiro público para catequisar os indígenas.
No nosso Grupo de Trabalho no Gabinete de Transição, nós clamamos pela criação de uma secretaria de educação para os povos indígenas, e não por uma coordenadoria, que tem menos espaço e menos autonomia.
A nova FUNAI – antes, chamada de Fundação Nacional do Índio e, hoje, chamada de Fundação Nacional dos Povos Indígenas – não faz mais parte do Ministério da Justiça. Ela funciona agora dentro do Ministério dos Povos Indígenas. O termo “índio” apresentava uma conotação ideológica muito forte e fazia com que as pessoas associassem o indígena a características negativas, como o pensamento de que ele é preguiçoso, indolente, primitivo, selvagem, atrasado ou mesmo canibal, além do fato de ignorar toda a diversidade presente entre os povos originários. A luta que temos hoje é para fortalecer e para remontar todo esse setor, investindo na carreira de seus servidores e fomentando concursos públicos.
Demarcar terra, saúde e educação: eis o tripé.
É difícil, mas sempre estivemos, estaremos e não deixaremos de estar juntos pela união e pelo respeito aos povos indígenas.