Brasil em busca de um futuro
Augusto Jobim do Amaral é professor nos Programas de Pós-Graduação em Filosofia (Faculdade de Humanidades) e em Ciências Criminais (Faculdade de Direito) da PUCRS. Concluiu o doutorado em Altos Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, Portugal. Além disso, atuou como Professor Visitante na Universidad de Sevilla, Espanha, e exerce a função de Research Fellow na Università degli Studi di Padova, Itália. É autor do livro "Politics of Criminology" (Tirant lo Blanch, 2020) e é editor de "Algoritarismos" e "The City as a Biopolitical Machine" (Tirant lo Blanch, 2022).
Este artigo foi escrito por ele para a edição 79 do boletim semanal do WBO, de 11 de agosto de 2023. Para assinar o boletim, basta inserir seu email no formulário no rodapé do artigo.
Seguimos reféns do medo no Brasil. Este afeto político que nos condena a repetir as mesmas histórias – e, sobretudo, sequestra qualquer futuro de transformação efetiva em favor de reações de pouca coragem – ainda conduz as decisões governamentais do terceiro governo Lula. Sequer atualmente conseguimos identificar mais o “presidencialismo de coalizão”, sempre exposto pelo quid pro quo de cargos por uma base frágil no Congresso Nacional. Nem mesmo a gradual conquista do centro como termômetro da política representativa parece vingar diante do mais explícito parlamentarismo de extorsão, que já parece ter capturado a conhecida agenda desenvolvimentista que disfarça um neoliberalismo com rosto humano.
É de uma espécie de semipresidencialismo que se trata na prática. O atual governo não conseguiu alterar substancialmente nem mesmo o mais nefasto regime de orçamento secreto que marcava também o governo anterior. Substituiu-o por um outro modo do mesmo, rendido ao Presidente da Câmara dos Deputados antes mesmo de assumir. Metade do valor do então orçamento secreto continua nas mãos do Relator do projeto de lei orçamentária, fruto de uma emenda à Constituição (EC nº 126/2022) aprovada que regulamentou as tais “emendas de relator com orçamento próprio”. A outra metade ficou voltada a “emendas individuais” de execução obrigatória pelo governo e com valores turbinados em dobro em comparação à época de Bolsonaro. Em resumo, praticamente todo o orçamento de investimento do país está na mão do Congresso mais conservador da história brasileira e que o atual governo imagina docilizar com as mesmas estratégias que nos trouxeram até aqui e sem qualquer garantia de apoio.
Este é só mais um exemplo de que o sistema de pactos que estruturou a Nova República no Brasil se esgotou há algum tempo e a negação disto ou mesmo a falta de um projeto efetivo distinto parece nos condenar às repetições trágicas aprofundadas na atualidade. A questão deve ser posta de modo peremptório: até quando o medo de retorno bolsonarista (se é que algum dia alguém pode acreditar que tenha evaporado) permitirá que a covardia vença a coragem de pôr a imaginação política em movimento, mesmo que sob o eventual risco das derrotas?
Sem protagonismo, de fato, em saber o que se quer, haverá pouco espaço de transformação profunda e necessária na sociedade brasileira. Um instante de exaurimento geral como o atual, ligado à indignação contra o sistema representativo da democracia liberal, que exatamente daria a oportunidade de ao menos tentar algo novo, até agora, parece ser atraído por uma cegueira cínica que se contenta em ser gestora do pânico e que pretende ignorar potencialidades que ainda nos assombram. Apenas para ficar num ponto, há o inarredável enfrentamento direto da militarização e do punitivismo que constitui o exercício da democracia no Brasil como marco securitário.
Nada novo hoje estarmos envolvidos com mais notícias de chacinas de policiais militares que mataram pelo menos 16 no Guarujá/SP, 10 no estado do Rio de Janeiro e 19 na Bahia só nas últimas semanas. Trata-se de modo de governo que apenas é condensado nestes eventos e, principalmente, é rotina para a maioria das populações periféricas no país. Sabendo que um dos interlocutores mais próximos do Presidente e Ministro da Casa Civil era governador da Bahia e teve sua gestão marcada pela explosão recorde no país de mortes praticadas por policiais, apenas como exemplo, pouco interesse parece sinalizar mudança no quadro do genocídio e perseguição da juventude negra no país. A urgência neste campo da segurança pública não dá para esperar e impõe ao menos a colocação na pauta pública da discussão sobre a extinção das polícias no Brasil – não apenas sua desmilitarização; política efetiva que muitos movimentos em diversos países já lutam e avançam, mas que no país, em geral, ainda caminha timidamente, em que pese ser historicamente a polícia mais letal do mundo.
Da mesma forma, o encarceramento em massa operado pela criminalização da mesma clientela de (ainda) não assassinados pelo Estado através da política criminal de drogas, que apenas potencializa o controle social, a guerra e morte num mercado de substâncias tornadas ilícitas. Diga-se de passagem, o atual julgamento na Suprema Corte, a respeito da descriminalização do consumo de drogas, por mais necessário que seja, ainda não toca sequer no verniz fundamental da problemática – seja da completa regulação do mercado hoje ilegal das drogas, seja enfrentar o maior efeito do proibicionismo que é impacto efetivo nas taxas de homicídio no país derivado de conflitos armados entre grupos que se enfrentam em disputas por mercados ilegais.
Se não nos dermos conta de que, em larga escala, o regime de pactos da democracia liberal acabou, tal como a extrema direita já anteviu – e se organizou em função de isso –, só restará defender instituições falidas e funcionar reiteradamente como partido da ordem quando eclodirem as revoltas que virão. Apenas o rompimento desta dinâmica é que permitirá, quem sabe, alguma discussão, mobilização e organização das pautas, tais como estas e muitas outras, para que algum futuro político seja possível.
Radicalizando o debate, mesmo que se possa ganhar ou perder seja em votos seja nos levantes populares, o que não se deixará é dissolver a luta e a permanente força da criatividade política. O Brasil tem servido de exemplo como laboratório insurrecional da extrema direita no mundo também por causa disso: possui uma extrema direita popular que soube perceber a verdade da insatisfação (mobilizando-a desde conceitos reacionários) e que consegue (até hoje) manter-se num estado de sublevação iminente e efetiva, pronta sempre a pressionar o governo.
Ao menos tentar sair de um “reboquismo” que confinou setores hegemônicos da esquerda brasileira e que procurou historicamente no país aliar setores da burguesia esclarecida com uma direita democrática (sem esquecer a “magistocracia”) é estar muito atento, no Brasil, aos riquíssimos processos de politização amparados por novas experiências de vida coletiva auto-organizada. Em jogo neles estão menos eventuais unidades eleitorais e mais “confluências” para ação.
Lembremos que Aldeia/Favela/Quilombo são potências de futuros não capturados, por óbvio não ausentes de contradições. Porém, são forças destituintes que não se reduzem à integração definitiva como fiadores governamentais. Produzir curto-circuitos que abram este presente sobre o futuro não deixará de passar por alguma dose de ousadia a partir das condições que nos são dadas. Se os acontecimentos radicais são aqueles que escapam às mesmas histórias é porque são os únicos capazes, para além dos estados de coisas que os suscitam, de responder ao insuportável.