Haiti: 20 anos e os mesmos erros. Qual o papel do Brasil?
Neno Garbers mora no Haiti desde 2012, onde é pesquisador, professor, correspondente e mediador de Comunicação Não-Violenta. Este artigo foi escrito por ele para a edição 113 do boletim semanal do WBO, publicado em 19 de abril de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.
O Brasil liderou por 13 anos o componente militar da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti). Cerca de US$ 1 bilhão (R$ 5 bilhões) anual foi gasto nessa missão que envolveu 36 países e uma estrutura caríssima, com trabalho concentrado no aspecto bélico, cujos objetivos eram a promoção do desarmamento da população, a desarticulação dos grupos armados e das gangues e a reestruturação e o treinamento da Polícia Nacional Haitiana – objetivos que, do meu ponto de vista, o próprio Haiti poderia ter cumprido.
Agora, passados sete anos do fim da Minustah, fala-se novamente na constituição de uma nova missão estrangeira no Haiti. Mas, antes, temos de nos perguntar: como foi possível que uma missão com tantos agentes internacionais, como era o caso da Minustah, tenha apoiado grupos políticos ligados aos EUA, que usam gangues para se manter no poder, escanteando uma série de agentes políticos importantes, respeitados e com histórico democrático no Haiti?
Mais do que isso, a Minustah enviou militares e esqueceu-se de que cada jovem ‘’desarticulado’’ em grupos armados precisa de nova ‘’articulação’’, com investimento para reinserção. E, por fim, os investimentos na Polícia Nacional do Haiti foram pífios.
Antes de tudo, os problemas do Haiti são de infraestrutura, trabalho, saúde, educação. Nenhuma gangue coopta jovens que têm opções que os valorizem mais. O povo sabe qual tipo de apoio deseja. Já fui parado na rua incontáveis vezes por pessoas me pedindo, não comida, apesar da fome, mas o pagamento do boleto da escola dos filhos.
Vemos nos últimos meses, mais uma vez, o Haiti ser pauta da CARICOM (Comunidade do Caribe), bloco de cooperação econômica e política da região, criado em 1973, após a independência de diversas ex-colônias europeias e que hoje conta com 16 países membros e 1 país observador, Cuba. Numa busca por mediação, depois de escutar todos os grupos políticos ali presentes, o bloco agora propõe um Conselho Presidencial Provisório para o Haiti, com 7 membros de diferentes grupos políticos do Haiti. A proposta da CARICOM inclui um ponto claro: que todos os membros desse Conselho estejam de acordo com a missão, ‘’não-onusiana’’, aprovada no Conselho de Segurança da ONU, em outubro de 2023.
É uma tentativa de que agentes políticos haitianos deem o aval e uma carta branca para que uma nova missão entre no país que tanto sofreu com missões tapa-buraco no passado, uma das principais razões da situação atual. Proposta de missão essa, aliás, requerida por um primeiro-ministro provisório, sob orientação dos EUA, e considerado ilegítimo e desmoralizado, pois não alcançou nem um dos seus únicos dois objetivos em seus mais de 2,5 anos no poder: melhorar as condições de segurança do país e organizar as eleições.
Aliás, vale lembrar que Ariel Henry sofre denúncias de ter ligação com as mesmas gangues que invadiram as prisões e é visto como ilegítimo e suspeito por boa parte da sociedade, já que foi nomeado por Jovenel Moïse, ex-presidente que, naquela época (2021), já estava com seu mandato terminado, mas continuou no poder até o dia 7 de julho de 2021. Nesta data, Moïse foi misteriosamente assassinado, justamente três dia após a nomeação de Ariel Henry como primeiro-ministro, em um crime até hoje não esclarecido, com vários indícios de obstrução da Justiça e sem ter todos seus possíveis mandantes investigados.
Exigir que, para ser membro desse novo Conselho criado em acordo com a CARICOM, um haitiano esteja de acordo com a chegada de mais uma missão internacional é algo que tem nome: chantagem internacional e nova imposição política. É um ataque à soberania desse povo, um absurdo em qualquer lugar do mundo, normalizado quando se trata do Haiti. Até agora nenhum governo do mundo se posicionou publicamente contra essa imposição.
Uma vez participei de um Colóquio por aqui, organizado por haitianos, onde mais de 50 organizações locais e do mundo juntas analisaram à fundo, com testemunho de centenas de vítimas, o legado da Minustah. Em seguida, foi organizado um Tribunal Popular onde os crimes da missão da ONU foram julgados. Quais dos órgãos responsáveis pela missão estavam presentes? Nenhum.
Agora, sem avaliação, sem responsabilização, sem justiça, sem auto-crítica, propõe-se uma nova missão, em moldes ainda em geral parecidos, e talvez pior, com caráter ‘’não-onusiana’’. Seria essa uma forma de se evitar qualquer futura responsabilização? O que a ONU aprendeu no Haiti foi apenas a se proteger melhor para não ser responsabilizada por seus crimes? Como chegaria ao país caribenho a cabeça de um policial estrangeiro que eventualmente viesse para cá, sabendo que, aqui, crimes nunca foram julgados? Quais mecanismos de denúncia, fiscalização e prevenção uma missão ‘’não-onusiana’’ teria?
Aparentemente, a verdadeira missão do primeiro-ministro, Henry, era de encaminhar a chegada de uma força de segurança. Com esta missão, essa sim, quase cumprida, nesta semana ele anunciou que deixará o cargo em breve, assim que for instaurado esse Conselho. O Quênia, que havia se prontificado para a missão, depois da resolução da CARICOM suspendeu sua participação.
O partido político Pitit Desalin (Filhos de Dessalines), grupo historicamente de oposição aos governos que estão no poder desde 2011 e que buscou fazer parte do acordo, decidiu, por causa dessa cláusula, não entrar no Conselho e denunciar tal imposição. Segundo Jacques Adler, um dos membros do partido, a ideia da comunidade internacional ali, especialmente dos Estados Unidos, é que uma nova missão, nos mesmos moldes das antigas, seja imposta. Ele termina: ‘’gato escaldado tem medo d'água fria’’. Diversos grupos denunciam que essa medida foi tomada justamente para dividir ainda mais os haitianos, e depois acusá-los de não conseguirem chegar a um consenso.
Destaca-se que inicialmente foram dadas 24h para que os haitianos decidissem se participariam do Conselho e enviassem os nomes de seus representantes. Jacques é categórico ao dizer que a ideia da comunidade internacional é ‘’fazer tudo às pressas, para passar decisões que não são da vontade popular dos haitianos’’. A utilização da ideia de emergência para que medidas sejam aprovadas sem a reflexão e a discussão política necessárias, levanta ainda mais suspeitas de que EUA, Henry e as gangues atuem em conjunto para que o agravamento de atos de violência virem o principal argumento para a instalação de uma nova missão.
Restam mais perguntas: por que não há esforços para convidar mais agentes políticos locais importantes à mesa? Hoje acordei com o comentário de um deles, sentindo-se excluído: ‘’os sete escravos mentais internacionais já foram escolhidos?’’, referindo-se aos membros do Conselho. A CARICOM acredita que suas decisões serão acatadas por grupos que nunca foram incluídos no debate?
Com essa chantagem vemos que, mesmo quando os políticos locais sérios têm alguma possibilidade de dialogar em espaços de decisão internacionais, isso acontece de forma previamente delimitada, cerceada, manipulada. Qual nível de soberania e qual transição democrática a comunidade internacional espera para o Haiti, de verdade?
Isso tudo deixa claro como os políticos no Haiti, inclusive Henry, continuam parecendo apenas peças de um jogo de xadrez que especialmente EUA, França e Canadá determinam. Nesse jogo, haitianos parecem ser todos peões e os primeiros a caírem quando acabam de prestar seus serviços em nome dos reis.
A atual situação rememora 20 anos antes, período em que um presidente eleito por ampla maioria popular, Jean-Bertrand Aristide, foi, segundo ele mesmo, ‘"sequestrado e deposto’’ por forças externas, substituído por um presidente temporário, o qual em seguida solicitou uma missão de paz a essa mesma comunidade externa. Missão essa, aliás, a Minustah, comandada pelo Brasil, que ficou 13 anos no país e nos trouxe diretamente à catastrófe de hoje.
Até o presente momento, o Brasil não manifestou interesse em participar da nova missão da ONU no país caribenho. Informações de bastidores dizem que o Brasil não avalia de forma positiva os resultados da Minustah e, além disso, foi essa missão a responsável por catapultar uma série de figuras militares à vida política nacional.
O Brasil continua tendo certa relevância local por uma razão: seu lugar no coração dos haitianos, apesar de tudo. É inegável o apoio do Brasil à migração legal com visto humanitário, entre outros projetos de cooperação no país. Mas quando vamos agir de forma enfática e planejada para que o haitiano possa ficar em seu país?
Já que temos visões diferentes entre Brasil e EUA sobre a primeira República Negra e o caráter dessas missões, o Haiti não merece ser um ponto de discórdia, assim como Palestina tem sido? O Brasil não conseguiria propor e liderar outras formas de cooperação Sul-Sul, antirracistas e anticoloniais?