Os bancos públicos e o financiamento da transição climática
Rafael Giovanelli, gerente de Pesquisa do Instituto Escolhas, e Sergio Leitão, diretor executivo do Instituto Escolhas. Este artigo foi escrito para a edição 145 do boletim semanal do WBO, publicado em 29 de novembro de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo indicado.
“Se for este o caso, não deveríamos cobrar preço maior de capital de bancos que não têm investimento verde?”. A frase é de Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, em palestra proferida em 9 de novembro de 2024, na Suíça, em evento do Banco de Compensações Internacionais, que funciona como uma espécie de banco central dos bancos centrais, inclusive orientando práticas regulatórias. Na oportunidade, Campos Neto reconheceu a importância do financiamento na transição para uma economia de baixo carbono, defendendo a incorporação de questões climáticas nos mandatos das autoridades financeiras nacionais, além de sugerir encarecer exigências para bancos que não financiam atividades sustentáveis, demandando reservas maiores para gerarem operações de crédito, como a frase acima indica.
É correta a direção apontada pelo presidente do Banco Central brasileiro para o enfrentamento da emergência climática. De fato, é preciso aprimorar a regulação do sistema financeiro para que seja possível transformar as carteiras de financiamento, de modo que os recursos que hoje impulsionam negócios baseados em desmatamento ou energias fósseis sejam redirecionados para atividades sustentáveis e lucrativas, como as energias renováveis ou cadeias produtivas da biodiversidade. O Brasil pode mostrar ao mundo que isso é possível, reformando leis nacionais de fundos públicos e bancos de desenvolvimento para destravar, com o dinheiro de que já dispomos, a economia de baixo carbono. Nessa estratégia de vanguarda, devolveríamos para a sociedade o que é dela, em um novo modelo de produção descarbonizado.
Por exemplo, anualmente, 3% da receita do Imposto de Renda e de produtos industrializados é diretamente destinado para os Fundos Constitucionais de Financiamento do Norte (FNO), Nordeste (FNE) e Centro-Oeste (FCO), que têm a função de induzir o desenvolvimento de cada uma dessas regiões. Apenas para o ano de 2024, a programação desses Fundos estava prevista em mais de R$ 60 bilhões. O Banco do Brasil administrou R$ 11 bilhões, o Banco da Amazônia (Basa), R$ 13 bilhões, e o Banco do Nordeste (BNB), R$ 37 bilhões. Mas a maior parte desses recursos não é direcionada para a economia de baixo carbono.
Entre 2020 e 2024, ao administrar o FNE, o Banco do Nordeste (BNB) alocou, em média, 15% dos recursos no FNE Rural, programa que apoia atividades agropecuárias, inclusive com supressão de vegetação nativa na Caatinga e no Cerrado. Foram mais de R$ 22,5 bilhões projetados para esse programa, enquanto os valores destinados para bioeconomia, atividades florestais e agroecologia não chegaram, somados, a 0,1% dos orçamentos anuais do Fundo naquele mesmo período. Os valores destinados à recuperação de áreas degradadas e ao desenvolvimento de atividades sustentáveis ficaram abaixo de R$ 30 milhões por ano, um montante insuficiente para que atividades sustentáveis rivalizem com negócios intensivos em carbono.
Além disso, as operações de crédito rural implicam riscos consideráveis para a conservação ambiental, exigindo cuidados redobrados dos bancos públicos. Entre 2020 e 2023, o desmatamento no Cerrado saltou de 7,9 mil km² para 11 mil km², um aumento de 40%, fazendo desse o bioma mais devastado do país. Essa alta foi puxada pela expansão da fronteira da soja no Matopiba, região que ocupa áreas de expansão agrícola nos estados do Maranhão, Tocantins, Bahia e Piauí.
Já o Banco da Amazônia (Basa) destinou, em 2022, R$ 9 bilhões do FNO para a agropecuária, o equivalente a 76% de suas contratações. Pará e Rondônia receberam R$ 5,3 bilhões e responderam, juntos, por metade do desmatamento da floresta amazônica naquele ano. Esse cenário exige cautelosa diligência das instituições financeiras em suas operações de crédito, afinal, é preciso garantir que os recursos dos cofres públicos não sejam empregados em atividades que fazem avançar o arco do desmatamento e que agravam a crise climática.
Mas temos de ir além do cuidado com os riscos ambientais para realizar a transição climática: precisamos de uma mudança profunda nas carteiras dos bancos de desenvolvimento. O pressuposto é que haja mais recursos propulsionando negócios sustentáveis do que recursos impulsionando atividades intensivas em carbono. Em outras palavras, precisamos de definições sobre valores, cronogramas e metas para o redirecionamento do dinheiro público. Conceder pequenas parcelas não é suficiente. Enquanto, a maior parte do orçamento de centenas de bilhões de reais do BNDES, do Basa, do BNB permanecer dedicada às fontes emissoras de gases de efeito estufa, a transição não acontecerá.
Uma boa proposta para corrigir essas disfunções do financiamento público foi aprestada no Projeto de Lei Complementar nº 176/2024, do Deputado Federal Nilto Tatto (PT/SP). De acordo com o projeto, até 2030, 60% das carteiras de financiamento do BNDES, do Basa, do BNB e do BB deveriam ser alocadas em atividades sustentáveis, chegando a 100% até 2045. O financiamento público deveria priorizar projetos de energia renovável, restauração florestal, agroecologia, agregação de valor à exploração da biodiversidade, entre outras atividades sustentáveis. Ficariam proibidos os empréstimos de dinheiro público para negócios que dependam de novos desmatamentos ou que produzam mais combustíveis fósseis.
O financiamento da transição climática também foi tema central na COP-29, realizada em Baku, no Azerbaijão. Criou-se grande expectativa sobre uma nova meta de financiamento global, com apoio consistente de países desenvolvidos aos países em desenvolvimento no enfrentamento das mudanças climáticas. O Brasil, no entanto, não precisa aguardar a ajuda internacional para fazer a sua parte. Podemos avançar com os recursos nacionais, por meio dos bancos de desenvolvimento. O dinheiro público, cuja função é induzir o crescimento, é decisivo para financiar a transição climática e construir uma nova economia. É preciso coragem e determinação para redirecioná-lo. Esse é o promissor caminho que precisamos trilhar de agora em diante.