Quebrando o “teto de vidro”: Brasil avança com a criação de ação afirmativa para promoção de juízas mulheres
Clara Mota é juíza federal, doutora em direito econômico pela Universidade de São Paulo, integrante do grupo de pesquisa “Direito e Políticas Públicas” da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pesquisadora nas áreas de judicialização de direitos socioeconômicos; direito econômico e gênero e instituições do sistema de justiça. Desde o ano de 2017, passou a atuar como uma das juízas fundadoras e coordenadoras do coletivo em prol da equidade de gênero na Justiça Federal. Este artigo foi escrito por ele para a edição 89 do boletim semanal do WBO, de 20 de outubro de 2023. Para assinar o boletim, basta inserir seu email no formulário no rodapé do artigo.
A ministra da Suprema Corte brasileira, Rosa Weber, em sua última sessão à frente da Presidência do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), órgão administrativo que formula as políticas judiciárias no país, alcançou a aprovação de uma histórica ação afirmativa em favor de juízas mulheres, permitindo que se trace um horizonte de futura paridade na composição das cortes de apelação, hoje predominantemente ocupadas por homens.
Os números evidenciam que, embora sejam 38,8% do quantitativo total da magistratura, as mulheres representam apenas 25% das pessoas que integram a segunda instância judicial. Os dados de participação feminina são ainda mais baixos no âmbito da Justiça Federal, onde apenas 32% dos juízes são mulheres e, em segundo grau, a participação se reduz a 19%. Por fim, segundo estatísticas que chocam, apenas 6% das magistradas brasileiras são negras.
Esse cenário de desigualdade encontrou até aqui regras supostamente neutras que geraram impacto diferenciado em desfavor das mulheres e se mostraram bastante difíceis de alterar. Estudos acerca do comportamento judicial no Brasil revelam o enraizamento de uma ideia de “profissionalismo” na visão projetada pelos juízes sobre eles mesmos, havendo uma homogeneização ideológica que reforça a adoção de padrões e perspectivas sexistas. Tal compreensão se faz presente nos próprios critérios de promoção estabelecidos pela Constituição Federal.
As regras constitucionais desenharam uma carreira da magistratura hierárquica e vertical, permitindo a ascensão de juízes a partir de dois critérios que se alternam vaga a vaga: antiguidade e merecimento. Pelo critério de antiguidade, promove-se às Cortes de apelação o juiz com mais tempo de atividade. Já segundo o critério de merecimento, devem ser observados fatores como produtividade e aperfeiçoamento técnico. Na prática, em muitos tribunais, as promoções por merecimento acabam obedecendo a critérios estritamente políticos, que se baseiam nas relações pessoais estabelecidas com os juízes que dirigem os tribunais e escolhem os candidatos a serem contemplados com a promoção.
Esse estado de coisas sofreu uma radical mudança com a ação afirmativa instituída pelo CNJ. Agora, a carreira judicial contará com filas distintas para homens e mulheres, de forma que as mulheres competirão entre si, em listas exclusivamente femininas, garantindo-se que, ao final, a vaga será preenchida por uma delas. A reserva de vagas para mulheres permanecerá vigente até que cada tribunal atinja, no mínimo, 40% de mulheres em sua composição.
Para além de efetivar uma série de normas contidas em tratados internacionais dos quais o Brasil é parte, mais especialmente a CEDAW (Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women), a paridade judicial tende a influenciar a adoção de medidas similares em outras carreiras públicas, já tendo sido reproduzida, por exemplo, na Defensoria Pública Federal. O efeito irradiador da medida ainda não pôde ser mensurado e merece atenção. Conhecida por ser uma carreira conservadora, nesse episódio, a magistratura moveu a sua fronteira e fez-se vanguarda.
A despeito da excelente notícia, o caminho rumo à equidade de gênero no Poder Judiciário ainda demandará muitos esforços e articulação. Durante sessão em que se aprovou a ação afirmativa, foram percebidas resistências à medida, encampadas por entidades de classe da magistratura e dirigentes de tribunais, que apresentaram pedidos de adiamento e conseguiram uma redução na abrangência da proposta.
Diante delas, a ministra Rosa Weber citou o poeta espanhol Antônio Machado para registrar que “o caminho se faz ao caminhar”. Com tal afirmação, quis expressar que a progressão no campo da equidade de gênero nos tribunais não seria esgotada naquele dia. Há um longo percurso a ser trilhado para a implementação da paridade e quebra do “teto de vidro”, afastando-se os obstáculos “invisíveis” historicamente erigidos para barrar a trajetória de ascensão das mulheres na carreira judicial.
O front, certamente, se deslocará para disputas nos tribunais acerca da aplicação da regra a situações concretas. No entanto, é possível dizer, com toda certeza, que as juízas mulheres estarão preparadas e engajadas no propósito de seguir caminhando.