A cooperação brasileira Sul-Sul está de volta
Laura Trajber Waisbich é especialista em cooperação internacional. Atualmente, trabalha como pesquisadora na Universidade de Oxford. Ela também é afiliada a três think tanks sediados no Brasil: o Instituto Igarapé, o Articulação Sul (Centro de Pesquisa e Políticas de Cooperação Sul-Sul) e o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Este texto foi escrito por ela originalmente para a edição 50 do Boletim Informativo do WBO (Washington Brazil Office), publicado em 20 de janeiro de 2023. Para acessar e assinar o boletim semanal do WBO em inglês basta inserir seu e-mail no formulário no rodapé deste artigo.
No discurso que fez, logo após sua vitória eleitoral, o presidente Lula da Silva prometeu “trazer o Brasil de volta” ao cenário mundial. Esse lema foi repetido várias vezes por Lula, assim como por muitos de seus ministros recém-empossados. No centro desta empreitada estão as relações Sul-Sul do Brasil. O fortalecimento dos laços com o “mundo em desenvolvimento” esteve no cerne das gestões anteriores do Partido dos Trabalhadores (PT). O próprio Lula foi um grande entusiasta da ideia. Durante seus dois primeiros mandatos, Lula não apenas encarregou seus assessores de política externa mais próximos dessa missão, mas também a defendeu pessoalmente por meio de sua carismática diplomacia presidencial.
Sem dúvida, e apesar das muitas idas e vindas, sob o PT o Brasil viveu uma “era de ouro” de sua cooperação Sul-Sul. O governo defendeu a integração regional, construiu alianças estratégicas com potências em ascensão – inclusive sob o guarda-chuva do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e tornou-se um “provedor” de políticas e soluções técnicas para países menos desenvolvidos, principalmente na América Latina e na África. Também investiu no fortalecimento de suas próprias credenciais como uma das principais vozes do mundo em desenvolvimento em fóruns multilaterais.
Assim como ocorreu e ocorre com outras esferas da política externa, cada um desses aspectos da “agenda Sul-Sul” do Brasil continha várias inconsistências e gerou inúmeros debates e contestações. Embora seja normal (e saudável) que as agendas de política externa sejam discutidas internamente e gerem disputas sobre prioridades, atores envolvidos e recursos, durante o período dos governos petistas, sob a chamada “política externa ativa e altiva”, no entanto, o Brasil experimentou um período sem precedentes de politização, bem como de polarização partidária, a respeito de sua identidade internacional e seus movimentos diplomáticos.
A crítica exacerbada da agenda Sul-Sul, no entanto, mostrou-se um tanto inapropriada. Longe de ser uma questão de ideologia, estreitar os laços com a região e o mundo em desenvolvimento é uma ferramenta pragmática para tornar o contexto geopolítico existente mais propício ao desenvolvimento e às aspirações nacionais. Não faz sentido para um país como o Brasil não investir em bons laços com seus vizinhos, ou negociar e intercambiar bens e serviços exclusivamente com países industrializados e negligenciar mercados e expertises que tenham como proveniência outros lugares do planeta. Criminalizar as relações do Brasil com o mundo em desenvolvimento, portanto, não é apenas míope, é um erro. A atual pandemia da Covid-19 demonstra, ademais, o valor de aprender e trocar com o Sul sobre respostas políticas, bem como alinhar-se com outros países em desenvolvimento para negociar coletivamente um melhor acesso a insumos estratégicos.
Da saúde global ao comércio global, ter boas relações com os “países ricos” é necessário, mas longe de ser suficiente. Olhando para o futuro, Lula e seus formuladores de política externa estão preparados para retomar essa vasta gama de esforços de cooperação Sul-Sul, como uma ferramenta de soft power e estratégica para o Brasil. Tomemos, por exemplo, a agenda ambiental. Nesse quesito, as relações Sul-Sul são um componente essencial para o tão necessário renovado ativismo brasileiro em relação a um tema global que tornou-se premente. Por um lado, não há solução para o grande desafio de reverter o desmatamento e o crime ambiental na Amazônia sem nossos vizinhos. Por outro lado, no âmbito das negociações sobre clima e biodiversidade, há espaço e apetite global para refazer do Brasil uma das principais vozes do Sul, reforçando a postura tradicional do país de unir as agendas de proteção ambiental e de desenvolvimento socioeconômico. Pode-se também esperar que o novo governo retome o ativismo diplomático do Brasil em outras arenas multilaterais, incluindo paz e segurança, saúde global e desenvolvimento inclusivo.
Embora a voz do Brasil seja importante – e ainda muito necessária –, o cenário global é muito diferente daquele existente quando o Partido dos Trabalhadores foi afastado do poder, em 2016. Não apenas o mundo se tornou mais volátil, mas também “o Sul” tornou-se mais heterogêneoa. Grandes países em desenvolvimento nem sempre representam – pior ainda, podem até entrar em conflito com – as posições dos países menores. A mudança climática é novamente um bom exemplo disso. Pequenos Estados insulares esperam que grandes emissores de poluentes do Sul Global, como China, Índia e Brasil, façam mais do que apontar o dedo para os tradicionais emissores do Norte e aceitem sua própria parcela de responsabilidades comuns, ainda que diferenciadas. O mesmo vale para outros bens públicos, incluindo as metas de desenvolvimento global.
Além de entender seu próprio papel e identidade como um grande país em desenvolvimento em um mundo em mudança, o novo governo terá que enfrentar alguns gargalos importantes para tornar a cooperação Sul-Sul uma ferramenta útil ao retorno do Brasil ao cenário global. Primeiro, Lula tem de incluir esta agenda no orçamento e nas estruturas governamentais. Isso significa ter recursos humanos especializados para cooperação internacional dentro dos ministérios governamentais e implementar reformas legais e institucionais, incluindo a aprovação de uma norma duradoura a respeito da cooperação internacional que possa ajudar o Brasil a operacionalizar e usar melhor as iniciativas de cooperação como um instrumento de política externa.
Isso também significa criar melhores interfaces entre governo, comunidade de especialistas e sociedade em questões relacionadas à política externa. Aqui, o novo governo deve aprimorar as estruturas de planejamento diplomático no Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) e formalizar canais de diálogo entre o Ministério, a Presidência e os diversos atores da sociedade civil.
Não se trata de velhos debates e sim de reformas inacabadas que podem ajudar o novo governo a fazer de sua renovada retórica Sul-Sul uma real ferramenta na reconstrução da política externa brasileira.