A ultradireita brasileira tem um futuro sem Bolsonaro?
David Magalhães é professor de Relações Internacionais na PUC-SP e coordenador do Observatório da Extrema Direita. Este texto foi escrito por ele originalmente para a edição 52 do Boletim Informativo do WBO (Washington Brazil Office), que será publicada em 3 de fevreiro de 2023. Para acessar e assinar o Boletim semanal do WBO em inglês basta inserir seu e-mail no formulário no rodapé deste artigo.
Há um sábio conselho dado por cientistas políticos: derrotas eleitorais não significam necessariamente derrotas políticas. Bolsonaro perdeu nas urnas, o que não significa que a ultradireita brasileira tenha sido derrotada politicamente. Passados quatro anos de governo Bolsonaro, a ultradireita saiu das eleições de 2022 mais forte do que entrou em 2018.
Algo não muito diferente foi dito por analistas norte-americanos quando, no dia 6 de janeiro de 2021, uma turba de fanáticos tentou tomar de assalto o Capitólio. Estava claro que Trump havia sido derrotado nas eleições, mas o trumpismo continuava sendo a principal força política organizada nos EUA.
O surgimento do bolsonarismo como movimento social representou, sem dúvidas, um divisor de águas na vida política brasileira. Diferente do que ocorre com outras importantes democracias sólidas no mundo, não há no Brasil um partido que represente ideologicamente a parcela conservadora da sociedade brasileira. Uma parcela que, como revelam diversas pesquisas de opinião, não é pequena. O que há no Brasil, por outro lado, são partidos fisiológicos que sobrevivem de práticas clientelistas.
Até o surgimento do bolsonarismo, a direita brasileira encontrava-se fragmentada. Bolsonaro tornou-se uma força aglutinadora de inúmeras tendências da direita brasileira: conservadores religiosos, nacionalistas militares, reacionários nostálgicos da ditadura e até da monarquia e liberais pró-mercado. As grandes manifestações que tomaram as ruas do Brasil em 2013, os ataques às elites políticas tradicionais desferidos pela Operação Lava Jato e um amplo sentimento antipetista produziu uma energia anti-establishment que foi muito bem capturada pela retórica populista de Bolsonaro. Na ausência de um partido para dar forma e representação para a direita brasileira, tivemos um líder de movimento que conseguiu representar uma demanda substantiva da sociedade brasileira. O fato de Bolsonaro ter escolhido uma legenda de aluguel para disputar as eleições – e de tê-la abandonado durante o seu governo – comprova que o bolsonarismo é uma força política que escapa às vias institucionais do sistema partidário brasileiro.
Ocorre que Bolsonaro não é apenas um líder carismático com visões conservadoras, como fora Ronald Reagan nos EUA. As ideias do líder brasileiro afrontam, desde sempre, a democracia liberal. Bolsonaro emerge fazendo apologia à tortura e defendendo a máxima do populismo penal segundo a qual “bandido bom é bandido morto”. Ele converteu-se em um fenômeno nas redes sociais com seus posicionamentos homofóbicos, misóginos e racistas. Em diversas ocasiões, atacou o Estado de Direito, afirmando que as minorias deveriam se submeter à maioria.
Cas Mudde, um dos grandes estudiosos da ultradireita, defende que devemos separar analiticamente o que é direita radical populista e extrema direita. A direita radical aceita a essência da democracia fundada na soberania popular, mas se opõe aos elementos da democracia liberal, isto é: ao direito de minorias, separação de poderes e ao Estado de Direito. Já a extrema-direita é, ao mesmo tempo, iliberal e antidemocrática, além de ser animada por um ímpeto revolucionário, desejando a ruptura violenta com a ordem social vigente para recriar um passado idealizado. Assim, por mais que Bolsonaro possa ser classificado como um líder de extrema direita, seu governo teve características típicas da direita radical populista, como o de Viktor Orban, na Hungria, e o de Donald Trump, nos EUA. A agenda de extrema direita de Bolsonaro só não foi levada às últimas consequências em razão de uma série de constrangimentos institucionais, políticos e sociais, que revelaram uma surpreendente resiliência da democracia brasileira.
No entanto, governos da direita radical populista encorajam grupelhos de extrema direita a saírem do anonimato legitimando suas ações. Nos EUA, o governo Trump criou um ambiente favorável para o fortalecimento da alt-right, a disseminação de grupos neofascistas como o Proud Boys e alavancou o terrorismo supremacista branco. No Brasil, a direita radical no governo também prestigiou diversas organizações e atores da extrema direita. O grupo paramilitar denominado “300 do Brasil” chegou a realizar um ato com tochas, à imagem e semelhança das cerimônias nazistas e do protesto da alt-right em Charlottesville. Um relatório produzido pelo governo de transição revelou que está em curso um processo de radicalização baseada em doutrinas de extrema direita (nazismo, fascismo italiano e integralismo) dentro das escolas brasileiras. Não menos extremistas são os militantes que estiveram acampados na frente de quarteis implorando por um golpe para impedir a posse de Lula.
Para além desses grupos entranhados na sociedade brasileira, o governo Lula enfrentará uma histérica oposição conservadora no Congresso Nacional. Mesmo que tenha sido derrotada no Executivo, a direita teve sua base ampliada no Congresso, e deve criar diversos empecilhos para o terceiro mandato de Lula. Mas é importante enfatizar que a força e a coesão da ultradireita no Brasil dependem do protagonismo de Bolsonaro como líder da oposição. Para isso, ele terá de romper com o recolhimento depressivo que se impôs após a derrota eleitoral. Como não dispõe de um partido histórico que defenda uma agenda conservadora, a direita brasileira é dependente de uma liderança forte e carismática para não voltar ao estado de fragmentação em que se encontrava antes da ascensão de Bolsonaro. Sem essa poderosa força aglutinadora a ultradireita brasileira pode ter o mesmo desfecho que teve o trumpismo, derrotado rotundamente nas midterms de 2022.