Ação de Verdade. Sobre a visita da relatora da CIDH ao Brasil

Daniel Carvalho de Souza é presidente do Conselho da Ação da Cidadania, onde está desde 1997. Além de desenvolver ações e projetos nas áreas sociais e culturais da entidade, trabalha diretamente nas diversas campanhas nacionais de combate à fome, como o Brasil Sem Fome e o Natal Sem Fome, que é realizado desde 1993. Filho do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, é formado em Desenho Industrial e já trabalhou com cenografia, programação visual, vídeo clipe e computação gráfica. Fez parte da Cia Aérea de Dança como cenógrafo, produtor programador visual e dançarino. Trabalhou ainda na Companhia Ensaio Aberto como designer, produtor e ator. Este artigo foi escrito por ele para a edição 86 do boletim semanal do WBO, de 29 de setembro de 2023. Para assinar o boletim, basta inserir seu email no formulário no rodapé do artigo.


A frase “só a verdade é revolucionária”, atribuída a vários autores em diferentes momentos da história, é a melhor descrição para a importância da visita que a advogada Soledad García Muñoz fez ao Brasil.

Como relatora Especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, seu objetivo foi monitorar a situação do país, e propor recomendações a partir da demanda de 25 organizações de direitos humanos e movimentos sociais.

Depois de visitar São Paulo, Brasília e Salvador, a Dra. Soledad chegou na sede da Ação da Cidadania, no Rio de Janeiro, dia 16 de junho. Aqui ela revelou que foi a primeira vinda da relatora desde 2018, pois o governo anterior negou todas as solicitações de visitas feitas pela ONU, enquanto praticava, deliberadamente, violações de direitos humanos como política de Estado. Existia, na nefasta administração passada, uma crença de que ao negar a realidade repetidamente, essa realidade desapareceria, como tentaram com a pandemia e a fome. Mas apesar de todo o esforço para ocultar pesquisas, bloquear estatísticas e esconder informações dos retrocessos dos últimos 5 anos, eles foram relevados pela sociedade civil de forma contundente à Dra. Soledad e equipe.

A relatora teve acesso através de fontes primárias às violações de direitos humanos brasileiros, narradas por pessoas e entidades que trabalham na ponta, sem intermediários ou versões, apenas os fatos. A diversidade vale a pena listar: Ação da Cidadania, Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos, Artigo 19, Associação Brasileira de Relações Internacionais, Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos, Associação Brasileira de ONGs, Black Women Policy Lab, Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, CENDHEC - Dom Helder Câmara, Central Única dos Trabalhadores, Geledés - Instituto da Mulher Negra, IBASE, Instituto João e Maria Aleixo, Instituto Marielle Franco, Instituto Vladimir Herzog, Laboratório de dados e narrativas sobre favelas e periferias, Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, Movimento de Trabalhadores e Trabalhadoras por Direitos, Movimento Nacional de Direitos Humanos, N'zinga Coletivo de Mulheres Negras, Odara - Instituto da Mulher Negra, Redes da Maré, SMDH, Sindomésticos da Bahia e Washington Brazil Office.

Não foi fácil ouvir os relatos sobre tantos crimes e injustiças que foram, e ainda são praticados, neste país. Ficamos com uma sensação de impotência diante da dimensão, do volume e da gravidade destas violações dos direitos humanos
— Daniel Carvalho de Souza


Não foi fácil ouvir os relatos sobre tantos crimes e injustiças que foram, e ainda são praticados, neste país. Ficamos com uma sensação de impotência diante da dimensão, do volume e da gravidade destas violações dos direitos humanos. Além de ser um problema histórico, é profundo e, infelizmente, naturalizado na nossa sociedade. Faço aqui um paralelo com a fome, que também é secular, e apesar de termos os instrumentos para erradica-la, somos o celeiro do mundo convivendo com 33 milhões de pessoas sem comida, e 125 milhões com alguma insegurança alimentar. O Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU através de politicas públicas, em 2014, e vamos sair de novo, mas as violações dos direitos humanos não se combatem só com programas de governo. É preciso também (principalmente) entender como fundamentais os valores universais, tão importantes para uma existência civilizatória em qualquer nação do mundo: cidadania, solidariedade, democracia e diversidade. Sem eles só existe a desumanização, que é o que vivemos agora. São exatamente estes valores que podem combater e erradicar não apenas a fome, mas a miséria, que é uma das principais causas da falta de direitos humanos. 

Mas, de forma quase quixotesca, nos alimentou de esperança ver a força e a resiliência de todas as entidades e lideranças que revelaram à Dra. Soledad o que acontece como consequência da desigualdade abismal que assola o Brasil há décadas, senão séculos. E assim como a fome tem gênero e cor, a violência também castiga mais as mulheres negras, que enfrentam o racismo estrutural em todas os setores da sociedade. O que foi narrado é a ponta do iceberg, a face visível de um problema muito maior e mais profundo. 

Ouvir suas vozes é exatamente o trabalho da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que em breve fará um relatório sobre o que está acontecendo no Brasil. Segundo disse a Dra. Soledad, a fome está matando em toda a América, incluindo o Alaska.

Depois de 5 anos no apagão do obscurantismo, este país será confrontado com a sua verdade, e o que faremos com ela, revolução ou omissão, depende de cada um de nós.


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