Ao proibir rememoração do golpe de 1964, Lula se baseia em falsa disjuntiva histórica

Fabio de Sa e Silva é professor Associado de Estudos Internacionais e Professor Wick Cary de Estudos Brasileiros da Universidade de Oklahoma. Vice-Presidente da Associação de Estudos Brasileiros (BRASA). Este artigo foi escrito por ele para a edição 111 do boletim semanal do WBO, publicado em 5 de abril de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.


Ninguém pode negar que a vida de Lula é difícil. Vitorioso nas eleições de 2022, na qual uma maioria tênue do eleitorado o confiou um terceiro mandato, o atual presidente do Brasil herdou um cenário de terra arrasada, em que as instituições estão profundamente desfiguradas. O Supremo Tribunal Federal havia se convertido em trincheira de defesa da democracia, absorvendo funções típicas de polícia judiciária e de uma quase defunta Procuradoria-Geral da República; o Congresso Nacional assumiu controle do orçamento e passou a abrigar um contingente sem precedentes de parlamentares de extrema direita; a saúde fiscal do país havia sido propositadamente deteriorada com o intuito de assegurar a reeleição de Bolsonaro para a presidência; e políticas públicas que já foram tidas como de excelência mundial, a exemplo do plano nacional de imunização ou o Bolsa Família, haviam sido desmanteladas ou desfiguradas pela gestão do capitão.

Num cenário tão delicado, chegava a ser quase inevitável que a terceira presidência de Lula fosse marcada por escolhas de prioridades, formação de coalizões e negociação – uma arte que Lula, desde seu primeiro mandato, demonstrou manejar como poucos.

Mas mesmo para quem já estava resignado com a ideia de uma presidência negociadora, o comando de Lula para que órgãos do governo deixassem de rememorar o golpe civil-militar de 1964, justo quando o evento completa a simbólica data de 60 anos, pareceu um pouco demais. Afinal, isso significa deixar de lado uma premissa cara não apenas à esquerda política, mas a todas as forças democráticas que, em 2022, se uniram em suporte à candidatura do atual presidente: a de “ódio e nojo à ditadura”, como bem sintetizou o deputado Ulysses Guimarães quando da promulgação da Constituição de 1988, a partir da qual o país prometia deixar para trás o “dia que durou 21 anos”.

Na justificativa que deu publicamente para seu comando, Lula apelou, sem muita surpresa, à ideia de concertação. Para o presidente, o golpe de 1964 faz parte do passado e serviria como distração no momento em que ele tenta recolocar o país de pé. Mais preocupante e digno de prioridade seria discutir a tentativa de golpe de 8/1/2023, cujas responsabilidades estão em fase adiantada de apuração por uma PF desaparelhada e em inquéritos dirigidos pelo Ministro da Suprema Corte, Alexandre de Moraes.

“Rememorar o golpe de 1964 está longe de ser medida inconsequente. Ela serviria para demarcar, de uma vez por todas, o entendimento de que lugar de militar é no quartel”

Mas nem como retórica, esse postulado faz sentido. Afinal, sobram evidências de que a tentativa de golpe de 8/1/2023 não é tão distinta do golpe bem-sucedido (para os golpistas, diga-se) de 1964. Comum e central a ambas é a pretensão de tutela militar do poder civil, desta vez sob a roupagem de uma interpretação infundada do artigo 142 da Constituição de 1988, invocada como autorizadora de uma intervenção das Forças Armadas no governo para responder a um fantasioso autoritarismo judiciário.

Como demonstram as tais apurações da PF, esse roteiro foi discutido intensamente com as principais autoridades militares. Algumas dessas autoridades teriam embarcado na aventura golpista; outras tentam dela se desvencilhar, mas não conseguem explicar por que participaram de reuniões, discutiram e revisaram minutas de decretos golpistas, emitiram notas endossando a indignação de extremistas contra o resultado eleitoral e permitiram acampamentos destes nas portas de quarteis – um conjunto de condutas e omissões a que o jornalista Kennedy Alencar deu o arguto rótulo de “golpismo recreativo”.

A disjunção entre o passado e o presente ensaiada por Lula é, portanto, historicamente insustentável. Se há algo que separa o passado do presente são as condições políticas, domésticas e internacionais, que tornaram o golpe inviável apesar da sede intervencionista de militares, e não porque essa fosse ausente.

Nesse contexto, rememorar o golpe de 1964 está longe de ser medida inconsequente. Ela serviria para demarcar, de uma vez por todas, o entendimento de que lugar de militar é no quartel, reiterando a importância da punição de oficiais da ativa e da reserva que insistem em atravancar a democracia e, quiçá, estimulando o Congresso Nacional a retomar o andamento de pautas importantes para a consolidação da democracia e do estado de direito no país – como a determinação de quarentena para que militares possam disputar eleições ou mesmo a proibição de que ocupem cargos típicos do governo civil.

O velho Karl Marx, odiado pelas nossas Forças Armadas, que em pleno século 21 seguem assombradas pelo “fantasma do comunismo,” certa vez escreveu que a repetição dos Bonaparte no poder havia se dado “primeiro como tragédia, depois como farsa”. Que neste 1º de abril de 2024, nos 60 anos do golpe civil-militar no Brasil, sejamos capazes de dizer “ditadura nunca mais,” para que aqui não tenhamos que vivenciar a nossa própria farsa.


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