60 Anos do Golpe Civil-Militar de 1964: teremos mais uma oportunidade perdida?
Rafael R. Ioris, Professor da Universidade de Denver e Pesquisador do WBO (Washington Brazil Office). Este artigo foi escrito por ele para a edição 110 do boletim semanal do WBO, publicado em 29 de março de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.
A prosopopeia é um dos recursos linguísticos mais conhecidos dos Estudos Internacionais, afinal quem já não ouviu algo como “o Brasil precisar cescer” ou “os EUA têm que decidir se querem ou não ser a polícia do mundo”? Valendo-me dessa lógica, que transfere a entes não animados características humanas, sugiro que, assim como na vida pessoal, na qual somos forçados reiteradamente a escolher entre caminhos distintos, na esfera das nações, escolhas difíceis também precisam ser tomadas, com coragem e visão de longo prazo. Caso contrário, oportunidades históricas serão perdidas, acarretando consequências nefastas não só para um indivíduo, mas para toda uma coletividade.
Um momento de tal magnitude se apresenta novamente para a população brasileira, em especial, para suas elites. Afinal, se aproxima o aniversário de 60 anos do fatídico Golpe Civil-Militar de 31 de março de 1964 que não só destruiu o que até então tinha sido uma das mais importantes e promissoras experiências de convívio democrático no Brasil, como custou a vida e os sonhos de milhares de pessoas, e aprofundou um modelo de desenvolvimento injusto e um projeto de país autoritário e excludente em termos econômicos, raciais e de gênero.
De fato, ao contrário do que herdeiros (as ditas viúvas) do regime empresarial militar de 1964-1985 têm buscado afirmar nos últimos tempos – por meio de distorções históricas aberrantes, mal informadas ou perversas, mas certamente não ingênuas, que apresentam a mais importante experiência autoritária que o país viveu com um período de paz, ordem e progresso –, o que efetivamente tivemos foi um jugo militar opressor que somente aceitou se retirar de cena, pelo menos em parte, por meio de uma lenta, gradual e segura transição para uma institucionalidade democrática, por demais ainda restrita, diga-se de passagem. Tal realidade é tão inquestionável que embora muitos movimentos sociais lutassem, ao longo da década de 1970, por uma redemocratização mais substantiva, onde as violações aos direitos humanos cometidas pelo regime fossem punidas, nossa transição, diferentemente da que ocorreu na vizinha Argentina, por exemplo, foi controlada pelo alto, levou cerca de uma década, e a anistia imposta pelo regime foi, por fim, incorporada à institucionalidade democrática vigente.
E se não conseguimos nos valer do momento da transição para criar uma democracia mais profunda, desde então, não temos, de fato, tentado enfrentar as sequelas de uma transição controlada, capenga e insuficiente. Quando do aniversário de 40 anos, muitos eventos acadêmicos sobre a ditadura e seus legados foram realizados. O mesmo ocorreu na data dos 1950 anos, e agora, também, no aniversário de 60 anos. Nada mais importante e necessário.
Mas o fato é que, em todos esses momentos, pouca discussão ocorreu para além das esferas acadêmicas e intelectuais. Essa realidade reflete a forma como tal questão é difusamente percebida pela população em geral. Mas ela reflete também, tragicamente, a baixa prioridade que o tema tem recebido de parte de lideranças políticas, de vários matizes ideológicos, que têm dirigido o país nos últimos 30 anos.
Mas se, em 2004, ou talvez mesmo em 2014, o legado de Forças Armadas que nunca tiveram que responder pelos seus crimes e que ainda se percebem como detentoras de um veto sobre a democracia talvez pudesse ser ignorado (com todas suas nesfastas consequências, como se viu recentemente), hoje, no aniversário de 60 anos, após um nova tentativa de Golpe, liderada ou pelo menos apoiada, direta ou indiretamente, por membros do alto comando militar, tal questão se torna ainda urgente e inexorável.
Vivemos uma crise democrática ao redor do mundo que tem servido como desculpa, pelo menos em grande parte dos países, para fortalecer a agenda salvacionista da ultra-direita, quase sempre por meio do culto ao grande líder machista, preconceituoso e autoritário. Interessantemente, dentro desse contexto preocupante, o Brasil é hoje uma exceção. De fato, após quatro trágicos anos da propagação do autoritarismo e de um renovado mando militar, o país conseguiu mobilizar todas suas forças democráticas para garantir uma eleição justa e o respeito ao mandato popular oriundo das urnas. Nesse sentido, o papel do Brasil no mundo de hoje se amplia para além das suas fronteiras, como exemplo da defesa da democracia, dos direitos humanos e da convivência democrática.
É, pois, absolutamente essencial que Lula, como grande líder do movimento em defesa da democracia que chegou ao poder em 2022, tenha a coragem de fazer a leitura correta do momento histórico em que vivemos para chamar a nação para um diálogo sobre o legado histórico e recente do autoritarismo no Brasil, assim como sobre como aprofundar as regras e o convívio democrático no país. Não há mais como tentar tocar em frente, não remoer e deixar isso para lá.
Sim, se trata de um governo sem maioria congressual em um país onde as Forças Armadas ainda se sentem como donas do poder, de fato. Mas é exatamente por isso que, de maneira pedagógica, o chefe maior da nação deveria conclamar a população à tarefa de aprofundar sua democracia, processo que implica a rejeição da lógica dos conchavos e acordões que tanto mal fizeram na história do país. Afinal, quem não enfrenta os fantasmas do passado será sempre atormentado por eles no futuro.