Duas condenações internacionais ao Brasil

Jefferson Nascimento, advogado, é doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do programa de Direitos Humanos do Washington Brazil Office. Este artigo foi escrito por ela para a edição 109 do boletim semanal do WBO, publicado em 22 de março de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.


A Corte Interamericana de Direitos Humanos divulgou, em 14 de março, duas sentenças relacionadas a casos envolvendo o Brasil. Foi a primeira vez que dois casos envolvendo o país foram divulgados em um mesmo dia desde 2002, quando o Brasil aceitou a jurisdição do tribunal, que tem sede em San Jose, na Costa Rica. 

O Brasil é o maior Estado sob a jurisdição da Corte Interamericana, uma vez que os EUA não ratificaram a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e, assim, não estão sob escrutínio do tribunal. Não obstante, o peso demográfico brasileiro não se traduz em número de casos na Corte IDH: o Brasil possui apenas 20 sentenças, atrás de Peru (109), Guatemala (57), Colômbia (48), Equador (45), Argentina (41), Venezuela (34) e Honduras (27).

O primeiro caso (Tavares Pereira e outros vs. Brasil) recentemente julgado pela Corte IDH envolve episódio ocorrido em 2 de maio de 2000, no Estado do Paraná, no sul do Brasil. Integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), incluindo famílias com crianças, foram interceptados pela Polícia Militar do Estado do Paraná enquanto se dirigiam à capital do estado, Curitiba, para uma marcha para reivindicar a reforma agrária. O impedimento supostamente era motivado por uma ordem executiva proibindo a entrada de manifestantes na cidade. A situação escalou para atos de violência pela polícia, resultando na morte do trabalhador rural Antônio Tavares Pereira, com outras 197 pessoas afetadas e 69 feridos. 

A Corte Interamericana declarou o Brasil responsável pelo uso desproporcional da força pela Polícia Militar do Estado do Paraná, resultando na violação ao direito à vida de Tavares Pereira e da integridade física das dezenas de feridos, além de violações à liberdade de expressão, reunião e circulação. Reconheceu, ainda, que o Estado brasileiro falhou na investigação adequada dos eventos e no processo penal relacionado, levando à impunidade e à violação dos direitos das vítimas e de seus familiares a garantias judiciais e proteção judicial. A Corte também apontou a violação da integridade pessoal dos familiares de Tavares Pereira devido à sua morte e à subsequente falta de investigação e punição. 

Como reparação, foram determinadas medidas como tratamento psicológico para as vítimas, atos de reconhecimento da responsabilidade internacional, e a obrigação de o Brasil ajustar seu ordenamento jurídico relacionado à competência da Justiça Militar, além de inserir conteúdo específico sobre a atuação em manifestações públicas na formação das forças de segurança do Paraná.

“As condenações destacam não só violações passadas, mas também problemas atuais que afetam a população, especialmente indígenas e negros, marcados por disputas de terra e abusos policiais”

O segundo caso (Honorato e outros vs. Brasil) alude à execução extrajudicial de 12 pessoas pela Polícia Militar do Estado de São Paulo durante a "Operação Castelinho", em 5 de março de 2002. A operação, não autorizada judicialmente e sem supervisão do Ministério Público, utilizou informantes infiltrados – pessoas em cumprimento de pena – entre as vítimas. Esses informantes atraíram o grupo para uma emboscada sob o pretexto de um roubo a um avião transportando valores. Ao chegarem ao local, os indivíduos foram mortos em um ataque coordenado por pelo menos 53 policiais militares, sem evidências de que estivessem armados ou que houvesse confronto. A Corte Interamericana declarou o Brasil responsável pelas violações ao direito à vida, à integridade pessoal dos familiares das vítimas, à verdade, e às garantias judiciais e proteção judicial. As investigações foram marcadas pela falta de devida diligência, manipulação da cena do crime, e obstrução da justiça, resultando em impunidade. 

Como medidas reparatórias, a Corte de San Jose determinou que o Brasil deverá criar um Grupo de Trabalho para investigar as ações do destacamento policial envolvido no episódio, incluindo as execuções extrajudiciais, e oferecer recomendações preventivas. O Estado brasileiro deverá implementar dispositivos de geolocalização e registro para veículos e policiais, e as gravações de operações policiais serão enviadas aos órgãos de controle. Um quadro normativo será estabelecido para afastar temporariamente policiais envolvidos em mortes civis, além de criar mecanismos para reabrir investigações e processos judiciais, mesmo com prescrição. A competência da Justiça Militar para investigar crimes contra civis será eliminada, e o Ministério Público de São Paulo receberá recursos adequados para investigar mortes causadas por policiais. 

Embora a Corte IDH tenha se debruçado sobre fatos ocorridos há mais de duas décadas, suas decisões nos casos Tavares Pereira e Honorato dialogam com os dias atuais, nos quais violações de direitos humanos contra trabalhadores rurais e abusos por forças policiais permanecem uma triste realidade. 

Disputas pelo acesso à terra e água e trabalho escravo rural ainda afetam mais de meio milhão de pessoas no Brasil. De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o 1º semestre de 2023 registrou o segundo maior número de conflitos no campo dos últimos dez anos, com 973 incidentes, um aumento de 8% sobre o período anterior. Essa violência afetou de forma desproporcional os povos indígenas, trabalhadores rurais sem terra, posseiros e quilombolas. Segundo a CPT, foram registrados 302 mortes em 59 massacres no campo do Brasil desde 1985; desses, 129 vítimas em 27 massacres ocorreram entre 2001 e 2022, ou seja, após os fato do caso Tavares Pereira.

A violência policial representa uma grave ameaça aos direitos humanos no Brasil, conforme reconhecido por organismos internacionais e, agora, reiterado pela Corte IDH. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 51.942 pessoas foram mortas no Brasil em decorrência de intervenção policial entre 2012 e 2022; apenas em 2022 foram e 6.429 mortes, representando 13,5% do total das Mortes Violentas Intencionais (MVI) verificadas no país. Trata-se de uma violência racializada: embora representem 56% da população brasileira, as pessoas negras perfazem 76,5% do total de MVIs e 83,1% das vítimas de intervenções policiais no Brasil

No caso específico do Estado de São Paulo, local no qual as violações do caso Honorato ocorreram, organizações da sociedade civil têm jogado luz sobre o aumento da letalidade policial recente: segundo dados do Ministério Público, as mortes em decorrência de intervenção policial subiram 94% no primeiro bimestre de 2024. Em 2023, 28 pessoas foram mortas em 40 dias de duração da Operação Escudo, batizada por especialistas como uma "operação de vingança" das forças de segurança em represália pela morte de policiais, que teve como palco a Baixada Santista, em São Paulo. Em 2024, uma nova edição da operação, batizada de Operação Verão, teve início em 7 de fevereiro e, até meados de março, já matou 47 pessoas

As recentes decisões da Corte Interamericana contra o Brasil por violência policial e conflito no campo representam um importante avanço na luta por justiça e direitos humanos. Elas destacam não só violações passadas, mas também problemas atuais que afetam a população, especialmente indígenas e negros, marcados por disputas de terra e abusos policiais. As medidas reparatórias ordenadas visam não apenas compensar as vítimas, mas também incentivar mudanças nas políticas estatais para evitar futuras violações, reafirmando o papel crucial da responsabilização internacional na promoção dos direitos humanos no Brasil.


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