As desigualdades dos desastres climáticos: falando de gênero e raça
Márcia Soares, diretora-executiva da Themis – Gênero Justiça e Direitos Humanos, organização feminista e antirracista que atua há 31 anos para ampliar o acesso das mulheres à justiça. Este artigo foi escrito para a edição 147 do boletim semanal do WBO, publicado em 13 de dezembro de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu e-mail no campo indicado.
Os desastres climáticos têm se tornado cada vez mais frequentes, afetando comunidades inteiras. No entanto, essa crise não atinge a todas as pessoas de forma equânime, como pudemos observar recentemente nas enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul. A realidade é que as mulheres empobrecidas, especialmente as mulheres negras, são as mais impactadas.
Frequentemente, são as moradoras nas regiões periféricas as pessoas que têm maior risco de exposição aos efeitos dos eventos climáticos extremos. Elas são também chefes de família em contextos de pobreza que enfrentam desafios adicionais no campo das violações de seus direitos, o que se intensificam em situações de crise.
O relatório “A dimensão de gênero no Big Push para a Sustentabilidade no Brasil: as mulheres no contexto da transformação social e ecológica da economia brasileira”, produzido pela ONU Mulheres Brasil, é categórico ao apontar que a carência de ações efetivas frente à emergência climática impacta de forma desproporcional mulheres, meninas e corpos feminizados, tendo em vista que partem de uma situação de profundas desigualdades estruturais.
O documento mostra que mulheres negras, indígenas, quilombolas, periféricas, pobres e corpos feminizados são grupos especialmente expostos aos impactos da inação climática, o que sublinha o racismo ambiental. Além disso, o contexto de profundas desigualdades estruturais, o aumento da frequência e da intensidade de eventos climáticos extremos – como secas prolongadas, inundações, tempestades, deslizamentos de terra, picos de calor e de frio etc – torna as mulheres mais expostas às adversidades que os homens. E isso leva ao óbvio: mulheres em condições de maior vulnerabilidade socioeconômica tendem a contar com menos ferramentas para enfrentar os impactos da mudança climática, tendo em vista as brechas de salário, empregos, acesso a bens e serviços públicos, representação e direitos.
Uma situação de crise reproduz e amplia as desigualdades sociais, onde duas questões são especialmente importantes de serem consideradas. Uma delas diz respeito à possibilidade de violação dos corpos das mulheres e meninas. A ameaça de violência sexual é uma constante, seja no momento do resgate, seja na situação de abrigamento compulsório. No Rio Grade do Sul, inúmeras foram as denúncias de abuso de crianças e adolescentes e de tentativas de estupro nos alojamentos provisórios. Outra questão diz respeito ao trabalho de cuidado, que é historicamente reservado às mulheres. É delas a responsabilidade pelo cuidado das crianças, idosos e doentes em condições absolutamente adversas, quando essas pessoas estão sem alimentos, medicamentos e, muitas vezes, sem acesso à água potável. Tudo isso somado à ausência de serviços de referência. Ademais, muitas dessas pessoas já estão no seu limite físico, psicológico e emocional e contam com menos ferramentas e renda para enfrentar as consequências dos desastres.
E se, por um lado, elas são mais suscetíveis às consequências desses eventos, por outro, se evidencia a desigualdade na resposta emergencial por parte do poder público. A atenção e a mitigação das consequências da crise desconsideram – ou não priorizam – as necessidades de mulheres e crianças. Além da invisibilidade a que historicamente está submetida essa população, há um fator que deve ser considerado: a falta de acesso das mulheres aos espaços de decisão e de formulação das políticas de redução desses impactos: as estratégias e ações de emergenciais costumam ser definidas por grupos predominantemente masculinos (vide a composição majoritária dos chamados comitês de crise, no caso do Rio Grande do Sul). A falta de segurança nos locais de abrigamento, a inexistência de espaços seguros destinados às crianças e a ausência de políticas públicas mais amplas direcionadas às mulheres expõe uma falha crítica na resposta a essas emergências.
Outra questão que chama a atenção é a lacuna de dados com indicadores de gênero e raça. A Nota Técnica do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) chamada “Uma Estimativa da População Atingida Pelas Enchentes do Rio Grande do Sul em 2024”, de setembro de 2024, aponta que o estado do Rio Grande do Sul contou com 581.643 desalojados e 65.762 pessoas em abrigos durante a enchente. Quantas delas são mulheres? Quantas negras? Quantas indígenas? Essas são perguntas que não conseguimos responder.
A experiência do Rio Grande do Sul demonstrou que diante da ausência de políticas adequadas de mitigação, a resposta comunitária foi essencial para reduzir os efeitos devastadores da enchente em seus territórios. Quando o poder público falha em oferecer suporte adequado, as lideranças comunitárias emergem mobilizando recursos, solidariedade e cuidado. As organizações da sociedade civil também desempenharam um papel crucial nesse processo, não apenas na ajuda humanitária, mas também na disseminação de informações e no suporte às lideranças para que pudessem atuar de forma mais eficaz e segura.
Neste novo contexto climático, é imprescindível repensar como as respostas aos desastres são estruturadas, de maneira a priorizar a inclusão das mulheres e de suas comunidades nas discussões e na definição das ações prioritárias para prevenção, mitigação e reparação dos impactos desses eventos. Isso é imprescindível para poderemos avançar para um modelo de resposta que não só atenue os danos, mas que previna a ocorrência de novos eventos nos territórios mais vulnerabilizados.