Liberdade artística requer, agora, política de Estado

Guilherme Varella é professor da Faculdade de Comunicação da UFBA. Doutor em Direito pela USP, foi secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (2015-16) e assessor técnico e chefe de Gabinete da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo (2013-15). Autor dos livros "Plano Nacional de Cultura: direitos e políticas culturais no Brasil" (Azougue, 2014) e "Direito à Folia" (Alameda, 2024). Este artigo foi escrito para a edição 147 do boletim semanal do WBO, publicado em 20 de dezembro de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu e-mail no campo indicado.


 

A violação das liberdades é um dos sintomas mais notados de um país em crise democrática. Ameaças à liberdade de imprensa, de cátedra e científica são as primeiras a serem denunciadas nestes casos. Direitos de protesto, não raro, também são infringidos. No caso da liberdade artístico-cultural, a violação gera um estrago ainda mais profundo. É neste território que ocorre a disputa de valores que sedimenta uma ordem social. Domesticar o campo da cultura e restringir a livre criação artística é corromper o ofertório de valores que sedimenta uma sociedade democrática.

O Brasil passou por uma recente crise democrática, da qual ainda se recupera. O país foi tomado por uma avalanche de episódios de violação de liberdade artística, com reverberação ainda presente. Foram centenas de casos que vieram à tona desde 2016, mas sobretudo entre os anos de 2019 a 2022, período de gestão do presidente Jair Bolsonaro. Este foi o intervalo analisado pelo Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística (MOBILE), que estudou, sistematizou e catalogou 299 casos de censura, autoritarismo e desmonte institucional da cultura no País. Por meio do Mapa da Censura, foram registradas situações de: censura prévia de espetáculos; fechamentos de exposições; derrubada de shows ou artistas de programações; perseguição a artistas e discursos de ódio na Internet; intimidações; instrumentalização e desvirtuamento de instituições públicas de cultura; paralisia de órgãos, políticas e programas; assédio institucional a servidores públicos da Cultura. O Estado, sobretudo o Executivo, que deveria amparar os artistas, emprestou seu aparato para a concretização da censura. No período estudado pelo MOBILE, as instâncias, poderes, entidades federativas e forças institucionais do Estado foram os agentes responsáveis pelos mais diversos tipos de violação artístico-cultural. O dado é alarmante: do universo de quase trezentos casos, 90% foram perpetrados pelo Executivo (contra 4% do Legislativo e 6% do Judiciário); e dessa amostra, 70% foram episódios de violação praticadas pelo Executivo Federal. O alvo preferencial, cerca de 30% dos casos registrados, são as expressões de gênero, raça ou orientação sexual ou violações motivadas por questões religiosas ou morais.

O expediente utilizado é inovador. Diferentemente da censura explícita dos períodos ditatoriais, agora os mecanismos foram revestidos de um verniz de formalidade e institucionalidade, de uma (pretensa) aparência de legalidade. A “nova censura” contou com dispositivos, como: cancelamento unilateral de contratos, cláusulas abusivas, pretextos orçamentários, desnutrição de linhas de financiamento, entraves burocráticos desproporcionais, indeferimento seletivo de prestação de contas, inércia e esvaziamento de instâncias responsáveis pelo andamento de projetos etc. Tudo dentro do espaço de discricionariedade do gestor público, longe do controle de legalidade e da fiscalização de outros poderes.

Claramente, a conjuntura política mudou. À ruptura democrática do impeachment de 2016, seguiu-se um governo autocrático, que extinguiu o Ministério da Cultura e empreendeu uma cruzada contra o setor artístico. Suas bases ideológicas foram inflamadas para eleger a cultura como inimiga. Em 2023, volta ao poder um governo que recriou o MinC e se comprometeu com uma agenda de reconstrução institucional e fortalecimento do setor cultural brasileiro. Sem dúvida, uma mudança significativa para as políticas culturais. O grande problema é que, hoje, a proteção da liberdade artística ainda não é uma política cultural.  Proteger, promover, preservar e reparar.

A liberdade artística é protegida como um direito fundamental por meio do artigo 5º, IX, da Constituição Federal. A previsão se ampara em diversos (e históricos) tratados internacionais de direitos humanos. A combinação com o artigo 220 do texto constitucional garante a proibição expressa da censura no Brasil. 

Ocorre que, de todas as espécies de liberdade abrigadas sob o gênero da liberdade de expressão, como a liberdade científica e de comunicação, ou o direito de protesto (artigo 5º, XVI e XVII), a liberdade artística é a menos desenvolvida institucional, judicial, midiática e politicamente. Isso se explica pelo ainda incipiente campo dos direitos culturais, em que ela se situa. Mas não justifica, em absoluto, a completa ausência do Estado como promotor de uma política pública que a proteja.

Mais que proteger, é preciso promover a liberdade artística, por meio de uma ação governamental complexa. Como um direito, ela exige a criação de condições para a criação artística integral e desenvolvimento pleno das expressões culturais. Como uma liberdade, requer a ação omissiva do Estado, de maneira que não haja repressão ou opressão do fazer artístico e cultural.

É necessária uma ação perene, estruturada, que trace balizas, orientações e diretrizes para as instituições públicas, e mesmo para o setor privado, sobre como preservar a liberdade artística nos contratos, regimentos, regulamentos, editais, portarias, termos de cooperação e convênio, enfim, no aparato institucional do direito da cultura, que vai lidar com a gestão e a produção culturais. Tais diretrizes devem ser discutidas internacionalmente, com países que passaram (ou passam) por situações semelhantes. Isso demanda do Brasil, inclusive, um novo protagonismo na articulação internacional pelos direitos culturais, a exemplo do que ocorreu com o debate da Convenção da Diversidade Cultural, liderado ministro Gilberto Gil, no início dos anos 2000.

Essa política deve propor o aprofundamento teórico do tema, seu amadurecimento jurídico, seu alastramento político e sua institucionalização no setor público. Deve levar em conta os requisitos desse direito: os titulares, os veículos e vetores, e o contexto em que se deve proteger efetivamente a liberdade artística. É preciso especializar o tema na seara das políticas culturais e nela lhe garantir um locus, que parece ser a Fundação Nacional das Artes (Funarte).

O artista enquanto trabalhador da cultura deve ser o foco (o cliente ou o beneficiário) dessa política. A liberdade é a principal matéria-prima do criador artístico e deve ser assegurada pelo Estado como uma garantia trabalhista, em qualquer circunstância política do País.  Àqueles trabalhadores e trabalhadoras artistas que viram sua obra censurada e seu direito violado, deve caber reparação. Medidas de valorização das obras cerceadas são fundamentais, como afirmação do direito à memória artística e à justiça no campo cultural. Uma política para afastar o rondante fantasma da censura.

Por fim, uma política pública para a liberdade artística deve fortalecer os artistas e o seu senso de cidadania cultural, mantendo-os cientes de seus direitos, altivos e plenos em sua dedicação. O objetivo é evitar que, com receio de represálias, por medo de perder contratos ou por insegurança financeira, eles próprios imponham limites à sua obra. É preciso evitar o mal maior que lhes pode acometer: a autocensura.

A liberdade artística pode ser uma grande e nova plataforma que conecta transversalmente todos os campos das políticas culturais relacionadas às artes, na perspectiva da concretização de direitos. Ela requer uma política de Estado agora. Antes de qualquer outro retrocesso.


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