As políticas em defesa da mulher precisam sair do papel

Rebecca ReichmannTavares é presidente e CEO da Brazil Foundation desde 2019. Ela trabalhou nas Nações Unidas como coordenadora executiva interina da iniciativa Every Woman Every Child e como representante da ONU Mulher na América Latina e no Sul da Ásia. É doutora em Edução pela Universidade Harvard. Este artigo foi escrito por ela para a edição 82 do boletim semanal do WBO, de 1º de setembro de 2023. Para assinar o boletim, basta inserir seu email no formulário no rodapé do artigo.


São inegáveis as conquistas da mulher nos últimos 35 anos no país. A Constituição de 1988 assegurou igualdade entre mulheres e homens e trouxe garantias trabalhistas como licença maternidade de 120 dias e a proibição de diferença salarial por motivo de gênero; em 2006, a Lei Maria da Penha criou mecanismos para coibir a violência contra a mulher nos termos da Constituição e de tratados internacionais; e a Lei do Feminicídio, de 2015, passou a prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, tornando-o crime hediondo.

Mas, por que, a despeito de todos esses avanços, ainda somos um dos países que mais agridem e matam mulheres? E o que isso tem a ver com os nossos esforços por empoderamento e emancipação?

De acordo com o último relatório sobre igualdade de gênero da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, o Brasil ocupa o quinto lugar no ranking de feminicídios na região, com 1,7 caso por 100 mil mulheres. Já uma recente pesquisa da consultoria Deloitte mostra que 60% das brasileiras sofreram assédio e microagressões no trabalho no último ano, enquanto o burnout, a remuneração inferior e a baixa expectativa de promoção estavam entre os principais motivos para mulheres desejarem largar o emprego.

Não podemos esquecer da dramática situação das mulheres trans no Brasil, líder mundial em assassinatos de pessoas trans e travestis, mesmo com a criminalização da homofobia e da transfobia em 2019. Foram 131 homicídios no ano passado, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais.

O Brasil ocupa o quinto lugar no ranking de feminicídios na região, com 1,7 caso por 100 mil mulheres
— Rebecca R. Tavares

O trabalho das Delegacias da Mulher e de toda a rede de apoio – assessoria jurídica, atendimento médico e psicológico, abrigos provisórios – tem sido fundamental. No entanto, é preciso focar não apenas na punição ao agressor e em medidas protetivas de efeito paliativo, mas priorizar o empoderamento feminino e a educação infantil.

O conceito de empoderamento deve ser ensinado às meninas desde cedo nas escolas, mostrando a elas que é possível serem mulheres independentes e bem sucedidas, seguindo a carreira que escolherem sem precisar de homens para legitimá-las. Já os meninos devem aprender o quanto antes sobre igualdade de gênero, para que se tornem adultos conscientes e atuantes na luta pelo fim da cultura do machismo.

Essa luta é também pelo direito sobre o próprio corpo, algo distante em um país onde muitas mulheres e meninas não têm acesso à educação e à saúde sexual e reprodutiva, o que as tornam mais vulneráveis a abusos e violências. Lembremos o caso ocorrido em Santa Catarina no ano passado, em que uma menina de 10 anos foi estuprada e engravidou do agressor. Mesmo com o trauma e os riscos de uma gestação precoce, houve pressão para que não fosse realizado o aborto, garantido por lei em tal circunstância, e até dados pessoais da criança foram vazados como forma de dissuadi-la da decisão.

E como a iniciativa privada pode contribuir para o avanço nas questões de gênero no Brasil, onde uma mulher ganha, em média, 78% do salário de um homem, segundo dados do IBGE?

Políticas ESG têm promovido mudanças significativas nas empresas. Ao tratarem de governança para mulheres, devem contemplar programas de formação e promoção de lideranças femininas e campanhas de consicentização de colaboradores homens, principalmente em cargos de chefia, a respeito de discriminação e assédio. Mulheres que trabalham em um local onde há respeito, remuneração justa e oportunidades de crescimento estão satisfeitas com o emprego e produzem mais.

O componente social da agenda ESG também pode trazer avanços na busca por equidade de gênero, por meio de incentivo a organizações que promovam empoderamento econômico-cultural e acesso à saúde, inclusive sexual e reprodutiva, para mulheres e meninas, com especial atenção a negras, indígenas, periféricas, rurais e trans.

A desigualdade de gêneros reflete as disparidades raciais e socioeconômicas do país. Estado, sociedade civil e iniciativa privada precisam defender a manutenção e aperfeiçoamento das conquistas alcançadas até agora, colocar em prática políticas afirmativas e combater os retrocessos. Estas são medidas essenciais para a construção de uma sociedade mais humana, igualitária e próspera.


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