O golpe no Chile, 50 anos depois
Mila Burns é professora associada do Departamento de Estudos Latino-Americanos e Latinos do Lehman College, CUNY. e diretora associada do Centro de Estudos Latino-Americanos, Caribenhos e Latinos do The Graduate Center, CUNY. Burns é autora de Sorriso Negro de Dona Ivone Lara (Bloomsbury Academic, 2019; Editora Cobogó, 2021) e Nasci para Sonhar e Cantar: Dona Ivone Lara, a Mulher no Samba (Editora Record, 2009). Ela trabalha há mais de duas décadas como jornalista no Brasil e em Nova York. Atualmente é comentarista política no ICL Notícias. No passado, atuou como editora-chefe e âncora de programas dedicados à comunidade latina veiculados na TV Globo Internacional, e trabalhou na TV Globo, The Economist, O Globo, entre outros. Este artigo foi escrito por ela para a edição 83 do boletim semanal do WBO, de 8 de setembro de 2023. Para assinar o boletim, basta inserir seu email no formulário no rodapé do artigo.
Em 11 de setembro de 1973, Salvador Allende dirigiu-se aos seus concidadãos pela última vez antes de morrer pelas próprias mãos enquanto bombas explodiam no palácio presidencial La Moneda. Os chilenos ouviram pela rádio o socialista democraticamente eleito, atribuindo a sua queda ao “capital estrangeiro, ao imperialismo, unido ao conservadorismo”. Ele apontou nominalmente os militares, mas não mencionou diretamente os Estados Unidos, que conspiravam para derrubar o seu governo, ou os grupos esquerdistas chilenos que o pressionavam para cumprir rapidamente a sua promessa de um “caminho chileno para o socialismo”.
Cinquenta anos depois, os chilenos ainda debatem as causas do golpe que inaugurou a ditadura de Augusto Pinochet, um regime violento que durou 17 anos, assassinou mais de 2 mil pessoas, torturou mais de 30 mil e deixou um rasto de fracassos econômicos. O atual presidente chileno, Gabriel Boric, anunciou os seus planos para uma comemoração do 50º aniversário que condenava claramente o golpe. Entre os organizadores nomeados por ele estava Patrício Fernandez, que renunciou após ser criticado por dizer que “a história pode continuar a debater” o porquê de o golpe ter acontecido.
Quando se trata do 11 de Setembro no Chile, a estreita faixa de terra entre a Cordilheira dos Andes e o Oceano Pacífico é suficientemente grande para acomodar inúmeras contradições. Segundo uma pesquisa CERC-MORI realizada em maio, 60% dos chilenos consideram que Pinochet será lembrado como um ditador. No entanto, 36% argumentam que ele modernizou a economia e que os militares tiveram razão em derrubar Allende.
Em outubro de 2020, os chilenos acorreram às urnas em meio a uma pandemia para revogar a Constituição elaborada durante o governo Pinochet. No ano passado, porém, mais de 60% da população rejeitou a mudança. Em 2019, durante o “Estallido Social de Chile” (A Explosão Social do Chile), milhares de pessoas protestaram contra as políticas neoliberais estabelecidas durante o regime autoritário. No entanto, alguns dos líderes do país eram herdeiros de Pinochet. O chefe da Defesa Nacional era Javier Iturriaga del Campo, cujo tio, Pablo Iturriaga, foi acusado de violações dos direitos humanos. Andrés Chadwick, ministro do Interior durante o primeiro governo de Sebastián Piñera, havia sido membro do grupo juvenil pinochetista Frente Juvenil de Unidad Nacional (Frente Juvenil de Unidade Nacional) e da Comissão Legislativa da Junta Militar. Piñera é primo de Chadwick e irmão mais novo de José Piñera Echenique, que serviu como ministro do Trabalho, Previdência Social e Mineração de Pinochet. Ele foi um dos Chicago Boys, alunos do economista norte-americano Milton Friedman, que defendeu privatizações e políticas de laissez-faire.
Esta polarização tem acompanhado o país desde a eleição apertada de Salvador Allende, em 1970, com 36% dos votos. Na época, a Constituição chilena determinava que em caso de vitória por pluralidade, o Congresso precisava confirmar o vencedor. Allende só foi declarado presidente depois de assinar o Estatuto de Garantias Constitucionais (Estatuto de Garantias Constitucionais), prometendo preservar o regime democrático.
O programa de Allende expressou um profundo compromisso com as reformas sociais e econômicas. As suas políticas previam a nacionalização de bancos e de indústrias-chave – incluindo as minas de cobre de propriedade dos EUA –, aceleraram a reforma agrária e aumentaram o controle governamental sobre a economia. Aterrorizados, empresários, conglomerados de mídia e os governos do Brasil e dos Estados Unidos decidiram agir. Os Estados Unidos suspenderam os empréstimos. A CIA prestou apoio a grupos de oposição e gastou milhões de dólares em operações secretas que criaram uma sensação aguda de crise através da propaganda e do apoio a greves e protestos contra o governo. A escassez de bens de consumo tornou-se frequente e a inflação aumentou. Muitos chilenos parecem atribuir isso à incompetência de Allende, esquecendo-se dos pesados investimentos para cumprir a exigência do presidente Richard Nixon de fazer a economia chilena “gritar” para “evitar que Allende chegue ao poder ou o derrube”.
O manual veio do Brasil. As Marchas das Panelas Vazias – grandes manifestações que reuniram milhares de mulheres da classe alta batendo panelas em protesto contra as políticas econômicas de Allende – foram lideradas pelo grupo El Poder Feminino, inspirado na Campanha Brasileira de Mulheres pela Democracia (CAMDE). Além disso, o governo brasileiro considerou treinar grupos guerrilheiros nos Andes para lutar contra Allende e forneceu dinheiro, armas, medicamentos, conhecimentos especializados, relatórios de inteligência e até torturadores aos inimigos do governo socialista. No Chile, o Brasil internacionalizou o seu modelo de terror de Estado e de repressão política muito antes da infame Operação Condor, uma campanha implementada em 1975 pelas ditaduras do Cone Sul com o apoio dos Estados Unidos, que resultou em 60 mil mortes e 400 mil prisões. O intercâmbio de ideias, estratégias, suprimentos militares e políticas diplomáticas entre o Brasil e o Chile facilitou a queda de Allende, o fortalecimento do regime de Pinochet e a campanha de terror intergovernamental realizada nos anos Condor.
A falta de consenso sobre a condenação do golpe pode parecer uma formalidade. É, no entanto, fundamental para a solidificação da democracia chilena. A responsabilização também. Gabriel Boric lançou um programa “Verdade e Justiça” para investigar desaparecimentos forçados sob Pinochet. Os Estados Unidos e o Brasil deveriam seguir o exemplo. Reconhecer os erros e as responsabilidades do Estado faz parte de um bom governo e é uma das poucas formas eficazes de evitar que a memória do terror se desvaneça.