Cerrado ou devastação

Fabio Martins, especialista em Direito de Povos e Comunidades Tradicionais e assessor jurídico da Rede Cerrado. Este artigo foi escrito por para a edição 133 do boletim semanal do WBO, publicado em 06 de setembro de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.


No dia 11 de setembro é comemorado o Dia do Cerrado; ainda desconhecido, o bioma é o segundo maior do país, com uma área de 2.036.448 km², cerca de 23% do território nacional, chegando a 36%, se incluídas as zonas de transição com outros biomas. Sua área contínua incide sobre os estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e Distrito Federal, com manchas isoladas no Amapá, Roraima e Amazonas. Composto por campos, veredas e floresta, é considerada a savana mais biodiversa do globo, com aproximadamente 5% das espécies do planeta e mais de 30% das espécies do país; abrigando metade das aves conhecidas, mais de dois terços dos mamíferos, ao menos 210 espécies de anfíbios, 1.200 espécies de peixes, 300 espécies de répteis e 13.140 espécies de plantas. O desconhecimento é um dos males do “pacote da devastação” do Cerrado.

A EXPANSÃO PREDATÓRIA NO CERRADO

Dos grandes biomas brasileiros, o Cerrado é onde o confronto entre o avanço acelerado da produção agropastoril e as demandas por proteção e conservação ao meio ambiente está mais presente e urgente. A transformação do Cerrado, a partir dos anos 60, na maior frente de expansão da agropecuária brasileira, resultante da introdução massiva de tecnologia e de recursos para a correção do solo e irrigação de monoculturas é notória e, seu desmatamento já alcançou aproximadamente 50% do bioma. O desmatamento, como um todo, teve queda de 11,6% no Brasil em 2023, entretanto, houve um aumento de 67,7% do desmatamento no Cerrado; com 93% de alertas contendo indícios de irregularidades. Outro fato importante é o arcabouço legal de conservação do Cerrado é muito flexível, pois, enquanto o Código Florestal protege contra o desmatamento 80% da vegetação nativa localizada em áreas privadas na Amazônia, no Cerrado as reservas legais cobrem apenas de 20% a 35% do bioma. Ou seja, a legislação prevê uma proporção bem menor para a conservação do Cerrado, quando comparado à Amazônia. A permissividade legislativa é, portanto, um dos males do “pacote da devastação” do Cerrado.

Brigadistas do Instituto Brasília Ambiental e Bombeiros do Distrito Federal combatem incêndio em área de cerrado próxima ao aeroporto de Brasília. Foto de Marcelo Camargo, da Agência Brasil

Brigadistas do Instituto Brasília Ambiental e Bombeiros do Distrito Federal combatem incêndio em área de Cerrado próxima ao aeroporto de Brasília. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A IMPORTÂNCIA HÍDRICA DO CERRADO

O Cerrado é conhecido como “Berço das Águas”, pois abriga 80% das infraestruturas de pivôs de irrigação do país, consumindo imensos volumes de água diariamente. A situação é preocupante já que os dados apontam uma redução no volume de água disponível, bem como a alteração no regime de chuvas e a redução dos períodos de precipitações. Quanto ao uso da água na geração elétrica, o Cerrado é responsável por 70% do volume utilizado pela Usina de Tucuruí, 50% de Itaipu e 100% de Sobradinho, beneficiando mais de 40% da população vivendo nas bacias do Paraná-Paraguai, do Tocantins-Araguaia, do São Francisco e do Parnaíba. O Cerrado é, portanto, fundamental para a matriz energética do país, o que realça o destaque que este bioma tem quando se trata da relação entre o desmatamento e a alteração no regime de disponibilidade de água, pois, a devastação se projeta no tempo, e seus efeitos no regime das águas são da ordem dos ‘ciclos longos’, o que significa que os impactos do desmatamento que está ocorrendo hoje serão sentidos daqui alguns anos; assim como os impactos que vemos hoje são efeito do desmatamento passado. E, como o desmatamento implica na redução da infiltração e da recarga dos aquíferos, isso compromete o abastecimento dos lençóis freáticos e diminui a capacidade de sustentar o crescente consumo de água na agricultura nos períodos mais secos. O uso inadequado das águas é, por isso, mais um dos males do “pacote da devastação” do Cerrado.

INDÍGENAS, QUILOMBOLAS, POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

O Cerrado é conhecido também como o “Bioma de Sacrifício”, no qual tanto ele quanto os povos que habitam nele são negados sistematicamente. Comunidades centenárias, cujos modos de vida foram invisibilizados, seguem objeto de toda sorte de investidas que levam ao apagamento. Com aproximadamente 12% da população do país, o bioma abriga ao menos 83 povos indígenas em 216 Territórios Indígenas, 44 Territórios de Comunidades Quilombolas e Tradicionais; além de 7 Reservas Extrativistas e 2 Reservas de Desenvolvimento Sustentável. Dados da Comissão Pastoral da Terra de 2023 revelam o aumento dos conflitos no campo. Um “discurso racista” que caracteriza o Cerrado como um “vazio improdutivo” a ser “desenvolvido” impõe uma lógica justificadora do desmatamento como necessidade. O desprestígio do bioma chega até a Constituição Federal que não incluiu o Cerrado como patrimônio nacional. Não bastasse a devastação já imposta, novas ameaças, como a Lei nº. 14.701/2023 (Marco Temporal) e a tramitação da PEC 48/2024 emergem.

Porém, esses povos são como as raízes profundas de suas plantas, capazes de sobreviver às adversidades; com seu modo de vida tradicional, esses povos insistem na preservação das águas; são também guardiões das ervas, das raízes, das ladainhas e dos “encantados” e seus mistérios. Esses Povos e saberes são uma grande riqueza. A negação deles é mais um dos males do “pacote da devastação” do Cerrado.


Previous
Previous

79ª UNGA: uma nova oportunidade para avanços na agenda global

Next
Next

Combater as mudanças climáticas requer uma mudança de mentalidade