Considerações sobre a vitória de Trump em 2024

Vânia Penha-Lopes, Ph.D., professora titular de Sociologia no Bloomfield College of Montclair State University, co-chair do Columbia University Seminar on Brazil e research fellow do WBO (Washington-Brazil Office). Este artigo foi escrito para a edição 143 do boletim semanal do WBO, publicado em 15 de novembro de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo indicado.


Pouco depois das 22h da noite de 5 de novembro de 2024, com a apuração dos votos da disputa presidencial entre Donald J. Trump e Kamala Harris já em andamento, mandei um recado para um amigo natural dos EUA, sociólogo, como eu, e branco: “Acho que o Trump ganha”. Ele respondeu prontamente: “Kamala precisava ser uma candidata mais forte.” Retruquei: “Acho que os americanos precisavam ser menos racistas.” Ele concordou comigo.

Como em 2016, fui dormir bem antes de os noticiários decretarem a vitória de Trump. Porém, ao contrário daquela eleição, desta vez a vitória de Trump não me espantou. Em 2016, Hillary Clinton teria sido sagrada presidente não fosse a sua derrota no Colégio Eleitoral, essa instituição criada nos primórdios do país para defender os interesses políticos dos estados escravocratas ao equivaler cada escravizado – obviamente impedido de votar – a três-quintos de um homem livre.

Embora a escravidão tenha sido abolida nos EUA em 1865, as eleições presidenciais continuam a ser decididas por voto indireto: são necessários 270 votos no Colégio Eleitoral para se eleger presidente. Em 2016, Trump angariou 306 votos contra 232 de Clinton. Quando tentou a reeleição em 2020, Trump conseguiu 232 votos contra 306 para Biden. Trump não aceitou a derrota e incitou uma horda a invadir o Capitólio em 6 de janeiro de 2021, o dia em que o Congresso corroborava a vitória de Biden. Até hoje, Trump e seus correligionários mantêm sua “vitória”.

Em 2024, não houve necessidade disso. Trump obteve uma vitória avassaladora no Colégio Eleitoral: 312 contra 226. Ele também recebeu 50,5% dos votos populares, ou quase 4 milhões de votos à frente de Kamala Harris. Parte do seu sucesso deve-se ao fato de ele ter vencido em todos os ditos “estados-pêndulos” ou “estados de batalha”, assim chamados porque seus eleitores não estão comprometidos com o Partido Democrata nem com o Partido Republicano. Portanto, dependendo da eleição, eles podem oscilar em qualquer direção, estabelecendo assim um campo de batalha para os partidos. São eles a Pensilvânia, New Hampshire, Virgínia, Carolina do Norte e Flórida, na Costa Leste; no Meio-Oeste, Ohio, Minnesota, Michigan e Iowa; Nevada e Colorado no Oeste completam o quadro.

Esse resultado não me espantou por três motivos: primeiro, apesar de todas as declarações incoerentes e sem fundamento que Trump fez ao longo da campanha, as pesquisas o colocavam pau a pau com Kamala Harris; se uma mulher branca não foi eleita em 2016, por que uma mulher não-branca o seria em 2024? Por fim, parte do eleitorado historicamente fiel ao Partido Democrata dava sinais de aproximação às promessas de Trump.

Entre as declarações infundadas de Trump destacam-se seus constantes ataques à identidade étnico-racial de Harris, alegando que ela sempre se disse indiana, mas, ao se candidatar à presidência, declarou-se negra, o que a tornaria mentirosa e aproveitadora. Na verdade, durante a sua vida pública, primeiro como promotora na Califórnia, depois como senadora pelo mesmo estado, e como vice-presidente, Harris mencionou que sua mãe, embora indiana, criou as duas filhas como negras, pois sabia que era assim que a sociedade as trataria.

“Os votos de mulheres e de homens brancos, independente de classe, apontaram para um ressentimento racial já visível desde os anos 1970, em parte devido às políticas de ação afirmativa"

Mais insidiosa ainda foi a alegação que Trump fez durante o debate com Harris, em 10 de setembro deste ano: “Eles estão comendo os cachorros! Eles estão comendo os gatos! Eles estão comendo os animais de estimação do povo que mora lá!” “Eles” eram os imigrantes haitianos que habitavam a cidade de Springfield, Ohio. Apesar de o moderador do debate afirmar que não havia nenhuma prova disso, Trump insistiu que era verdade. O fato de haitianos serem negros não pode ser ignorado, já que, desde 2016, Trump inclui o impedimento da entrada de imigrantes não-brancos em seu projeto de “tornar a América grande novamente”.

Como argumentei em meu livro The Presidential Elections of Trump and Bolsonaro, Whiteness, and the Nation (2022), a eleição de Trump em 2016 “refletiu a estrutura racialmente hierárquica de suas sociedades bem como a força da ideologia da supremacia branca que é necessária para aquela estrutura permanecer em vigor não obstante os esforços para desmantelá-la”. Os votos de mulheres e de homens brancos, independente de classe, apontaram para um ressentimento racial já visível desde os anos 1970, em parte devido às políticas de ação afirmativa. Em 2024, essas tendências se repetiram em maior escala, pondo por terra a ideia de que a eleição e a reeleição de Barack Obama haviam tornado o país “pós-racial”.

Trump repetiu em 2024 suas tendências misóginas, chamando Harris de “burra” e prometendo “proteger as mulheres mesmo contra sua própria vontade”. Ele também atraiu eleitores negros e latinos quando passou a alegar que os imigrantes lhes tiram os empregos. Antes disso, ele havia se igualado aos homens negros por se considerar “vítima” do sistema criminal, após ter sido julgado culpado de fraude em maio deste ano. Assim, a porcentagem de eleitores negros republicanos, que vem aumentando desde 2016, cresceu em 2024. Embora mais de 90% das mulheres negras tenham apoiado Harris, perto de 20% dos homens negros votaram em Trump. Já os latinos, que haviam apoiado Trump mais do que o esperado em 2016, aumentaram seu apoio a ele em 2024, em parte devido à atuação de homens menores de 45 anos, os quais, como os jovens negros, acreditam que Trump promoverá um mercado de trabalho mais robusto.

Trump também cortejou o voto dos judeus ao declarar que os que não votassem nele deveriam ser examinados, que Harris odeia Israel e que só ele pode proteger seus interesses. Predominantemente eleitores do Partido Democrata, os judeus votaram em sua maioria em Harris, embora, segundo fontes conservadoras, somente 61% votaram nela, enquanto que fontes progressistas registram 78% de apoio a Harris.

Em geral, a vitória de Trump em 2024 aponta para um realinhamento eleitoral, com boa parte da população voltada para a direita, e também um distanciamento das políticas de cunho social em prol de um individualismo que é característico da história dos EUA. O uso de imigrantes como bodes expiatórios também traz à mente o movimento nativista dos anos 1920 que resultou no fechamento das fronteiras dos EUA durante 41 anos.


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