Da Fragmentação à Cooperação: a importância estratégica da IDA do Grupo Banco Mundial

Marcos Vinicius Chiliatto é diretor-executivo do Grupo Banco Mundial pelo Brasil, e também Colômbia, República Dominicana, Equador, Haiti, Panamá, Filipinas, Suriname e Trinidad e Tobago. Anteriormente, trabalhou no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe das Nações Unidas (CEPAL). É doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Opiniões e pontos de vista são pessoais e de responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, a opinião do Banco nem de seu diretório. Este artigo foi escrito por ele para a edição 116 do boletim semanal do WBO, publicado em 10 de maio de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.



O mundo atravessa um período de transformações estruturais que afetam a ordem global. A relação entre as maiores potências econômicas vem progressivamente se deteriorando, em um cenário que coincide com a ocorrência de graves conflitos armados e com amplificação de sanções econômicas aplicadas a países. Enquanto isso, as instituições que fundamentam a governança global desde o pós-guerra, como a ONU, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, enfrentam desafios cruciais para se manterem relevantes. Essas instituições passam por reformas significativas para se adaptarem a uma arquitetura internacional em mutação e, por essa razão, encontram-se sob forte pressão. Enquanto o mundo vive esse processo de fragmentação geopolítica e geoeconômica, a nova configuração da governança global permanece uma incógnita.

Apesar deste contexto geral complexo, a liderança brasileira do G20 tem feito esforços notáveis. É relevante destacar alguns dos avanços alcançados, como, por exemplo, o fato de o ministro Fernando Haddad ter pautado o tema da desigualdade e ter trazido uma proposta de taxação da riqueza de uma minoria super-rica para o debate dos 20 mais poderosos ministros de Finanças do mundo. Além disso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou a aliança global contra a fome, cujo foco é o enfrentamento da insegurança alimentar, que assola milhões de famílias pelo mundo. No mais, a liderança brasileira no G20 tem desenvolvido instrumentos inovadores para ampliar o financiamento sustentável e proteger a biodiversidade, ao mesmo tempo em que promove uma agenda de profunda cooperação entre as instituições financeiras internacionais.

Ainda que o cenário geopolítico seja desafiador, esses avanços no G20 são expressão de que o multilateralismo continua sendo a melhor alternativa. Em paralelo à agenda do G20, o Banco Mundial acaba de dar demonstração de que o multilateralismo pode entregar resultados positivos. Criou-se recentemente uma plataforma que irá captar até US$70 bilhões em recursos adicionais para financiar aquilo que definimos como desafios globais.

A sinergia entre a agenda liderada pelo Brasil no G20 e o novo direcionamento estratégico do Banco Mundial também se torna evidente no tema da governança global. Enquanto no G20 o Brasil pressiona pela necessidade de reforma na estrutura multilateral de Bretton Woods, de forma que suas instituições passem a refletir a nova realidade geoeconômica do século XXI, os países-membros do Banco Mundial se preparam para discutir uma redistribuição de poder de voto na instituição em 2025, na qual espera-se um empoderamento do sul global.

Para este ano, o Grupo Banco Mundial encontra-se em uma de suas maiores empreitadas: a ambiciosa recomposição da Associação Internacional de Desenvolvimento (IDA, por sua sigla em inglês)[1], a ser acordada em dezembro de 2024.

A IDA é importante por ser a principal instituição de financiamento subsidiado para os países mais pobres do mundo, oferecendo recursos não-reembolsáveis (doações) e empréstimos altamente concessionais.

Os financiamentos concedidos pela IDA são destinados para projetos que visam a inclusão social, combate à pobreza e à fome, melhorar infraestruturas básicas, promover o acesso à saúde e educação, fortalecer as instituições governamentais e estimular o crescimento econômico. No ano de 2023, a IDA aprovou mais de US$ 30 bilhões em financiamento para 75 países, sendo a maioria na África. Além do financiamento, a IDA também desempenha um papel fundamental na prestação de assistência técnica e expertise para ajudar os países a desenhar e implementar eficazmente seus projetos.

Para o futuro financeiro da IDA será fundamental continuar desenvolvendo instrumentos criativos para ampliar os volumes de financiamento. Pode-se pensar, por exemplo, no uso de direitos especiais de saque (DES)[2], seja como pagamento para capital-híbrido, seja com a emissão de instrumentos de dívida atrelados aos DES que permitam captar recursos a prazos mais longos. Sem embargo, essas iniciativas não alterariam a natureza financeira principal da IDA, qual seja, de oferecer sobretudo recursos não-reembolsáveis e altamente subsidiados. Portanto, a IDA seguirá dependente de contribuições frequentes de países de alta e média-renda.

Para além desse alcance do modelo de financiamento aos mais pobres, a IDA tem uma importância particularmente estratégica para o sul global. Ainda que o norte global seja o grande doador da IDA historicamente (e isso precisa continuar), contribuições por parte de países emergentes tem crescido e poderão ter uma relevância adicional no momento histórico atual.

Por que sul global deve elevar sua participação na IDA? Primeiramente, pensemos na aliança global contra a fome, sendo discutida no G20. Nessa aliança, há um componente de sistematização das políticas conhecidas de combate à fome, para fortalecer parcerias sul-sul, e há um componente de mobilização de recursos. Nesse sentido, a ambiciosa recomposição da IDA e sua estratégia em combater a pobreza extrema e a insegurança alimentar poderão reforçar o pilar financeiro da aliança e ser também uma conquista do G20. Segundo, as contribuições efetivas do sul global na recomposição da IDA terão impacto direto nas discussões sobre governança global, uma vez que as negociações da revisão do poder de voto que se darão em 2025 no Banco Mundial levam em conta as contribuições diretas à IDA. Terceiro, enquanto os aportes do norte global são uma obrigação por conta da dívida histórica com a África, um gesto de solidariedade do sul global, que ganha relevância no cenário geopolítico e geoeconômico, é também importante. E no caso particular da América Latina, o Haiti é grande beneficiário da IDA e o seu desenvolvimento depende não só de resolver o monumental desafio da segurança, mas também da inclusão social e do desenvolvimento econômico.

Diante da complexidade do atual cenário geopolítico e geoeconômico global, é evidente que as transformações estruturais em curso demandam uma reconfiguração das instituições de governança mundial. O papel desempenhado pelo Brasil no G20, ao pautar temas cruciais como a desigualdade e a segurança alimentar, ressalta a importância do multilateralismo como caminho para enfrentar desafios comuns. A relevância da IDA do Grupo Banco Mundial se destaca não apenas como um instrumento vital para o desenvolvimento dos países mais pobres, mas também como um símbolo para fortalecer a cooperação entre o sul global e o norte. Os países emergentes podem não apenas cumprir uma maior função crucial no enfrentamento da pobreza e da fome, mas também influenciar positivamente a redistribuição do poder de voto nas instituições financeiras internacionais, promovendo uma governança global mais equitativa e, portanto, eficaz. Assim, a recomposição da IDA não apenas representa um passo importante na luta contra a pobreza, mas também uma oportunidade para redefinir as dinâmicas de poder no contexto internacional.


[1] O Grupo Banco Mundial é composto por quatro instituições financeiras: o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), cujo foco são para operações com garantia soberana em países de renda média; a já mencionada IDA, dedicada exclusivamente aos países mais pobres; a Corporação Financeira Internacional (IFC, por sua sigla em inglês) para operações com o setor privado, sem garantia soberana; e a Agência Multilateral de Garantia de Investimentos (MIGA, igualmente em sua sigla em inglês) que concentra-se na promoção dos instrumentos de garantia.

[2] Os Direitos Especiais de Saque (DES) são um ativo internacional criado pelo FMI para complementar as reservas oficiais dos países-membros. Funcionam como uma unidade de conta internacional e são alocados aos países de acordo com suas cotas no FMI. Os DES são utilizados principalmente em transações entre governos e instituições internacionais, bem como em operações de troca de moeda entre os bancos centrais. Sua principal função é aumentar a liquidez e a estabilidade do sistema monetário internacional. Com a ampliação recente dos DES, há debates sobre novas formas para o uso dos DES em bancos multilaterais de desenvolvimento, como uma forma de fornecer financiamento adicional para países em desenvolvimento, algo que depende sobretudo de decisões dos países detentores desse ativo reserva.

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