Muito além da ALCA: as possibilidade de uma maior cooperação entre o Brasil e os Estados Unidos

Kellie Meiman Hock é uma ex-diplomata dos EUA que serviu em Porto Alegre, São Paulo e Recife. Ela foi também diretora para Brasil e Mercosul do United Trades Representative (USTR). Meiman Hock é conselheira sênior da consultoria global McLarty Associates, onde liderou por mais de duas décadas o trabalho sobre Brasil/Mercosul e comércio internacional. Este artigo foi escrito por ela para a edição 117 do boletim semanal do WBO, publicado em 17 de maio de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.



Como uma pessoa envolvida há muitos anos com o Brasil,, eu queria ganhar um dólar por cada vez que ouvi um discurso destacando as semelhanças entre os Estados Unidos e o Brasil: dois países continentais, duas das maiores democracias do mundo com setores agrícolas altamente competitivos – e, mais recentemente – duas nações que passaram a enfrentar ameaças notáveis às suas instituições democráticas.

Tudo isso é verdade. Ao mesmo tempo, para fazer avançar a nossa relação bilateral, devemos ter uma visão que seja clara também a respeito das diferenças filosóficas de abordagem entre nossos países. Vou me concentrar aqui apenas nas políticas comercial e de investimento.

No início da década de 1990, quando entrei para o Serviço de Relações Exteriores dos EUA, o desafio da criação de uma zona de livre comércio na América do Norte era o tema quente. Em janeiro de 1994, atingimos esse objetivo. Grande parte da política econômica e de desenvolvimento dos EUA em relação às Américas passou a ser vista pelo prisma da possibilidade de expansão desse mesmo conceito de zona de livre comércio para todo o hemisfério. A ideia da Alca (Zona de Livre Comércio das Américas) foi lançada na Cúpula das Américas de dezembro de 1994, mas fracassou, e, em lugar disso, os Estados Unidos optaram por seguir buscando celebrar o maior número possível de Acordos de Livre Comércio avulsos na região, sob o conceito de “liberalização competitiva” tal como defendido pelo representante Comercial dos EUA, Bob Zoellick, no governo do então presidente, George W. Bush.

Uma das principais razões pelas quais a ALCA fracassou foi a falta de entusiasmo do Brasil. Naquele momento, o governo brasileiro acreditava que devia priorizar o Mercosul e apostar numa política industrial robusta, marcada por exigências de conteúdo local, bem como na abertura comercial multilateral por meio da Organização Mundial do Comércio (OMC). Os negociadores do Brasil acreditavam que esse caminho serviria melhor a seus interesses. Eles precisavam de qualquer acordo comercial que servisse ao seu setor agrícola, que é competitivo a nível mundial; e entenderam que os EUA nunca abandonariam os seus subsídios à produção interna, a menos que a Europa também o fizesse. Isso só aconteceria através de conversações baseadas em Genebra.

Além disso, os Estados Unidos queriam Acordos de Livre Comércio de “padrão ouro”, que incluíssem não apenas tarifas e serviços, mas também melhorias na propriedade intelectual, no investimento e em outras proteções, além de normas trabalhistas e ambientais. Este conjunto mais amplo de objetivos não foi atraente para um Brasil que acreditava já ter feito concessões comerciais suficientes na OMC e via a política trabalhista e ambiental como áreas de domínio soberano do seu governo.

Este passeio pela estrada da memória não pretende abrir velhas feridas, mas sim ver que espaço pode existir para discussões hoje. Outrora altamente crítico em relação aos requisitos de conteúdo local, o presidente Joe Biden concebeu uma política industrial – incluindo requisitos de abastecimento que beneficiam os produtores dos EUA e os nossos parceiros do Acordo de Livre Comércio – que poderia ter sido inspirada mais em Brasília do que em Washington. Além disso, o consenso nos Estados Unidos sobre a aposta nesses acordos de comércio livre de “padrão ouro” desgastou-se. As disposições sobre resolução de litígios entre investidores e o Estado estão sob ataque e foram severamente limitadas durante a renegociação do NAFTA conduzida pelo presidente Donald Trump. Entretanto, Washington passou a contentar-se com acordos comerciais mais limitados, os chamados “mini-acordos”, concluindo um com o Brasil em 2020, que passaria a abarcar compromissos alfandegários e regulamentares.

Ironicamente, esta nova realidade experimentada em Washington, derivada de um acordo interno vacilante sobre o papel da política comercial nos EUA no desenvolvimento econômico global, poderia potencialmente aproximar os Estados Unidos e o Brasil agora. Acordos comerciais menores e direcionados podem parecer mais atraentes para Brasília, se formulados da maneira correta. E embora o Brasil proteja ferozmente a sua soberania em todas as instâncias, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva procurou tranquilizar as partes interessadas no Brasil e no mundo de que seu país está comprometido com rigorosos padrões trabalhistas e ambientais. Isso ficará evidente quando o Brasil sediar a COP no próximo ano e se reflete na parceria bilateral sobre os Direitos dos Trabalhadores anunciada pelos presidentes Lula e Biden em setembro de 2023.

Existem várias áreas onde podemos desenvolver a cooperação mútua para tirar partido deste momento, especialmente no momento em que celebramos o 200º aniversário das nossas relações diplomáticas. Explorar um Acordo sobre Minerais Críticos para permitir que o Brasil se beneficie do novo foco dos EUA na política industrial é uma delas; o trabalho contínuo para manter a relevância da OMC é outra. Também podemos fazer muito em conjunto para enfrentar os desafios e as oportunidades da mudança tecnológica, incluindo a inteligência artificial.

A liderança do Brasil no G-20 este ano também cria uma plataforma interessante de colaboração, com o Brasil navegando em seu duplo papel como líder do Sul Global e do Ocidente de uma forma única, capaz de promover nossas agendas compartilhadas de desenvolvimento econômico mais equitativo, proteção ambiental, segurança alimentar e modernização das instituições internacionais. A abordagem pragmática que o Brasil tem historicamente adotado em relação aos compromissos internacionais confere-lhe uma flexibilidade que escapa aos Estados Unidos, que prefere manter o foco em alianças rígidas.

Embora existam muitas oportunidades, os desafios permanecem. Os Estados Unidos estão muito ocupados com conflito no Médio Oriente e com a guerra na Europa, além das ameaças à segurança nacional representadas pela China. A quantidade de investimento chinês no Brasil e a forma como o país desempenha o seu papel nos BRICS – grupo recentemente expandidos, a mando da China, agora com a incorporação do Irã – suscita preocupações em Washington. Navegar nesta dinâmica, num momento em que líderes americanos estão obcecados com a ameaça da China, não é pouca coisa. Mas à medida que o mundo se torna cada vez mais multipolar, há muito espaço para colaborar – e talvez o Brasil, com a sua longa história de flexibilidade nos seus compromissos internacionais, possa ajudar a mostrar-nos o caminho.


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