Faca de dois gumes: o que une e o que separa Biden de Lula

Fernanda Magnotta é mestre e doutora em Relações Internacionais pelo San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUC-SP), especialista em política dos EUA e ‘senior fellow’ do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais) no núcleo “Américas - EUA”, além de professora e coordenadora do curso de Relações Internacionais da FAAP. Este texto foi escrito por ela originalmente para a edição 53 do Boletim Informativo Semanal do WBO (Washington Brazil Office), que circulará no dia 10 de fevereiro de 2023. Para acessar e assinar o boletim semanal do WBO em inglês basta inserir seu e-mail no formulário no rodapé deste artigo.


Nos últimos anos, nos acostumamos com comparações – e inúmeras semelhanças – entre Trump nos EUA e Bolsonaro no Brasil. Como consequência, quase intuitivamente, alguns descrevem os oponentes desses líderes também como figuras comparáveis. Mas há uma falsa equivalência aqui.

Biden e Lula têm em comum o fato de serem políticos experientes, comprometidos com a democracia, e, cada um em seu contexto, associados a uma agenda de centro-esquerda.

Em tempos instáveis, acentuados pelo “alinhamento automático” de Bolsonaro com o trumpismo, há, é claro, desafios comuns que ambos os países enfrentam atualmente:

  1. A necessidade de defender os interesses nacionais contra os interesses da direita radical;

  2. A necessidade de lidar com os efeitos do populismo, nacionalismo e antiglobalismo;

  3. A importância de combater a narrativa anti-establishment e a política do ressentimento;

  4. A necessidade de lidar com desinformação, polarização doméstica e isolamento internacional.

Além dessas questões internas, as relações bilaterais entre o Brasil e os EUA são consideradas estratégicas e muito importantes. Os dois países mantiveram laços políticos e econômicos profundos e amplos ao longo da história. Após a Independência do Brasil, em 1822, os EUA estavam entre os primeiros a reconhecer esse novo status brasileiro, em 1824. Esses dois países são as duas maiores democracias do Hemisfério Ocidental. O Brasil é a 12ª maior economia do mundo e os EUA são o segundo maior parceiro comercial do Brasil. 

Os EUA e o Brasil têm muitos interesses em comum, como sempre afirma nossa diplomacia: 

  • O compromisso com o crescimento econômico sustentável e a prosperidade;

  • A promoção da paz internacional, segurança e respeito pelos direitos humanos;

  • A proteção do meio ambiente e da biodiversidade;

  • O reforço da cooperação em defesa e segurança.

Apesar de tudo isso, Lula e Biden são diferentes, principalmente porque representam países com capacidades muito assimétricas e desafios internacionais inegavelmente distintos.

Lula não é modesto. Ele vê no Brasil potencial de influência global. Ele orientou sua política externa nessa direção em seus dois mandatos anteriores e, a certa altura, incomodou as potências estabelecidas
— Fernanda Magnotta

Os Estados Unidos são uma superpotência em relativo declínio, enfrentando um processo de transição hegemônica. Ainda assim, é a potência militar mais significativa do mundo, uma das economias mais desenvolvidas do planeta, e os patrocinadores oficiais da atual ordem internacional, criada à sua imagem e semelhança. O Brasil, uma potência de médio porte, almeja recuperar uma liderança regional que foi fortemente abalada nos últimos anos. É também um país com ambições de um sistema internacional mais inclusivo.

Lula não é modesto. Ele vê no Brasil potencial de influência global. Ele orientou sua política externa nessa direção em seus dois mandatos anteriores e, a certa altura, incomodou as potências estabelecidas.

Ao mesmo tempo, o presidente brasileiro sabe que o Brasil de 2023 não é o Brasil de 2003. O cenário internacional é desfavorável devido à pandemia, à inflação dos países desenvolvidos e à guerra na Ucrânia. O Brasil tem um dos congressos mais conservadores de sua história. O bolsonarismo saiu da última eleição muito forte: elegeu o maior número de políticos para cargos públicos. O Brasil tornou-se uma sociedade mais polarizada, e o governo precisa dialogar com novos grupos relevantes: militares, evangélicos, etc. Não há boom de commodities nem a estabilidade macroeconômica do Plano Real, como havia 20 anos atrás. No fim das contas, a situação fiscal do país é muito delicada: atrair investimentos será um desafio, assim como controlar os gastos do governo.

A campanha de Lula tem enfatizado a importância de se reiniciar uma política externa ativa desde o primeiro documento divulgado antes da eleição. Nas últimas gestões do PT (Partido dos Trabalhadores), o chanceler Celso Amorim foi um dos mais influentes assessores do presidente. Juntos, eles têm enfatizado o fortalecimento da soberania brasileira e a defesa da ideia de que o Brasil é um país que busca ser respeitado internacionalmente. Amorim não é mais ministro das Relações Exteriores, mas ganhou um cargo ao lado do de Lula, em Brasília, onde é assessor especial do presidente.

Lula acredita no diálogo com todos os países e defende que em seu governo o Brasil não se submeterá a terceiros, destacando a retomada da cooperação Sul-Sul com a América Latina e a África. Mercosul, Unasul, Celac e Brics serão centrais em sua política externa.

Desde sua vitória, Lula fala em restaurar a credibilidade internacional do país com o Brasil sentado nas mais importantes mesas de negociações internacionais. Ele enfatizou especialmente as dimensões regional e multilateral de sua política externa e a importância das questões ambientais.

Com isso, esperamos que as relações EUA-Brasil sejam amistosas, como nos governos anteriores de Lula, pautadas por um pragmatismo econômico que interessa a ambos os países. Há, com certeza, muito espaço para diálogo com Biden, que Lula conhece muito bem.

Apesar disso, não significa que os dois países viverão um intercâmbio tranquilo, pois, em última instância, posições divergentes podem surgir, principalmente quando o Brasil busca maior autonomia no campo internacional ou quando o tema envolve alianças estratégicas.

  1. A que devemos prestar atenção a esse respeito? Na lista de questões sensíveis com potenciais tensões estão:

  2. Negociações que envolvam parceiros do Brics, como China e Rússia;

  3. A admissão na OCDE e o protecionismo;

  4. Relações com a Venezuela e arranjos regionais na América do Sul 

O caminho está aberto para um diálogo construtivo, mas apostar no consenso óbvio é uma ilusão.


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