Lula e Biden: desafios em comum e possíveis esforços conjuntos

Rafael R. Ioris é professor de História e de Política da América Latina na Universidade de Denver e ‘research fellow’ do WBO. Este texto foi escrito por ela originalmente para a edição 54 do Boletim Informativo Semanal do WBO (Washington Brazil Office) do dia 17 de fevereiro de 2023. Para acessar e assinar o boletim semanal do WBO em inglês basta inserir seu e-mail no formulário no rodapé deste artigo


Biden e Lula, os presidentes das maiores democracias do hemisfério, reuniram-se em Washington, em 10 de fevereiro, para planejar futuras colaborações em uma série de questões. Uma das principais inspirações do encontro foi o ataque às sedes do poder no Brasil em 8 de janeiro, que ecoou eventos ocorridos em Washington em 6 de janeiro de 2021. Foi então que Biden convidou Lula para vir a capital americana, mesmo que o interesse de Biden em trabalhar de maneira próxima com Lula já tivesse sido demonstrado antes, por meio do rápido reconhecimento à vitória eleitoral de Lula em 30 de outubro de 2022, logo após a divulgação dos resultados. Esse movimento foi fundamental para desinflar movimentos golpistas imediatos das forças de Bolsonaro, embora, infelizmente, isso não tenha sido suficiente para impedir a violência presenciada em janeiro em Brasília.

Dada a natureza improvisada da visita, já que geralmente essas reuniões duram muito mais tempo, houve muitas especulações sobre o que a reunião poderia alcançar. Logo no início desse encontro profundamente simbólico dos dois presidentes que chegaram ao poder depois que os líderes neofascistas arruinaram grande parte da imagem de seus respectivos países no cenário global, tanto Lula quanto Biden estavam prontos para dar um tom positivo para as relações bilaterais, bem como para unir forças em iniciativas multilaterais. Lula começou dizendo que seu antecessor isolou o Brasil, nação que busca agora se reposicionar no mundo. Ele disse também acreditar no estreitamento das relações com os Estados Unidos como parte fundamental nesse processo. Lula agradeceu a Biden por seu papel em ajudar a defender a democracia no Brasil, o que foi retribuído pela declaração de Biden de que as democracias de ambos os países foram atacadas, mas sobreviveram e, portanto, enfrentam experiências e desafios muito semelhantes.

Uma vez estabelecido o tom positivo da reunião, os dois líderes passaram aos detalhes. Eles tinham uma longa agenda envolvendo pelo menos conversas iniciais sobre questões de direitos humanos e trabalhistas; e igualdade de gênero e racial – áreas nas quais prometeram esforços conjuntos. Da mesma forma, e não surpreendentemente, eles se comprometeram a trabalhar juntos para fortalecer as instituições democráticas, o que incluem o diálogo com outros países na próxima Cúpula para a Democracia, em 2023. Além disso, na frente climática, Lula afirmou o compromisso do Brasil de trabalhar com a comunidade global para proteger os ecossistemas amazônicos e convidou os EUA a ajudar a apoiar o Fundo Amazônia. Em resposta, Biden prometeu que trabalharia com o Congresso dos Estados Unidos para encontrar esses fundos. Promessas de trabalho conjunto também foram feitas nas áreas de fome e pobreza, bem como em comércio e cooperação econômica.

A principal relevância dessa reunião foi traçar o caminho de novas relações, mais maduras e globalmente orientadas entre as maiores nações do continente
— Rafael R. Ioris

Havia muita expectativa sobre se os dois presidentes estariam de acordo no difícil tema da Ucrânia, visto que Lula já havia declarado, durante visita do chanceler alemão, Olaf Scholz, a Brasília, que o Brasil não se comprometeria a fornecer armas para apoiar esforços de guerra da Ucrânia. Embora Lula não tenha mudado de opinião, os dois países concordaram em denunciar a ilegalidade das ações da Rússia contra a integridade territorial da Ucrânia, e Lula reafirmou sua disposição de liderar um esforço multilateral de pacificação. Ao final, Lula convidou Biden para visitar o Brasil, convite que ele prontamente aceitou, especialmente no contexto das próximas comemorações do bicentenário das relações diplomáticas EUA-Brasil em 2024.

Em suma, esta não foi uma reunião destinada a formalizar ou anunciar novas iniciativas importantes. Em vez disso, sua principal relevância foi traçar o caminho de novas relações, mais maduras e globalmente orientadas entre as maiores nações do continente. Especialmente no meio do desastre da tentativa de Bolsonaro de redirecionar a política externa do Brasil em grande parte para se tornar um parceiro minoritário de Trump, o tom equilibrado da conversa é certamente significativo. Biden chegou ao poder buscando restabelecer a normalidade, após os tumultuados anos Trump. Isso vale tanto para as políticas internas quanto para as externas. Agora que Bolsonaro se foi, Biden viu esta importante reunião como uma grande oportunidade para lidar com o Brasil (mas também com a América Latina) em termos mais normais. Isso incluiu discutir assuntos comuns de comércio, imigração, bem como, especialmente no caso de Lula, a defesa das instituições democráticas no hemisfério. Assim, embora o significado seja bilateral, de certa forma, pode ser considerado como um encontro hemisférico, pois Biden e Lula tiveram a oportunidade de discutir e, espera-se, abordar assuntos relevantes para a maioria dos países do continente.

Por outro lado, Lula viu o encontro como central para seu objetivo tanto de manter relações construtivas com os Estados Unidos quanto de fortalecer os projetos comuns sul-americanos. Seria claramente útil para a política externa do Brasil se os Estados Unidos não se opusessem aos seus objetivos centrais. Essa abordagem funcionou bem no início dos anos 2000, quando Lula era presidente e conseguiu manter boas relações com os Estados Unidos (mesmo no governo Bush) e desenvolveu várias iniciativas comuns na América do Sul. Agora que o Brasil, e grande parte da América do Sul, deve lidar com uma competição maior entre Estados Unidos e China pela região, Lula busca recriar boas, mas certamente não subordinadas, relações com o governo Biden.

Lula já era visto em seu primeiro mandato como líder global. Agora, após o trauma da era Bolsonaro, o retorno de Lula é uma garantia para grande parte do mundo de que a democracia pode ser reconstruída no Brasil e a Amazônia pode ser protegida. A vitória eleitoral de Lula ofereceu a Biden a oportunidade de convidá-lo a vir a Washington para discutir questões importantes não apenas para o Brasil e os Estados Unidos, mas também para o mundo como um todo. Nesse sentido, esta foi uma reunião bem-sucedida que preparou o terreno para uma maior colaboração, espera-se, entre países que compartilham mais do que aparentam e que têm muito a ganhar com o trabalho conjunto. 


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