Imprensa e poder no Brasil: volta à normalidade?
Katia Brembatti é presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), editora no Estadão Verifica, o núcleo de checagem do jornal O Estado de S. Paulo, professora de Jornalismo na Universidade Positivo e vencedora de prêmios de jornalismo, como Esso, Tim Lopes, Colpin/IPYS e Global Shining Light Award. Este artigo foi escrito por ela para a edição 60 do boletim semanal do WBO, distribuído no dia 31 de março de 2023. Para assinar o boletim, informe seu email no rodapé desta página.
Mais do que uma ameaça à liberdade de imprensa, os anos da gestão do presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) foram marcados pela busca incessante de desmoralizar o trabalho jornalístico. Foi uma ação orquestrada pela alta cúpula do governo federal, que reverberava fortemente entre aliados, a partir de uma “fábrica” de desinformação e do negacionismo de fatos, com um discurso que incentivava atacar o mensageiro quando a mensagem desagradava a determinados grupos e interesses. Além de afetar a imagem da profissão e de, ao fim, prejudicar a população, que era levada a crer que o que estava sendo veiculado pela mídia consolidada era enganoso, o resultado dessa estratégia maquiavélica se traduziu também em números: naqueles quatro anos, o número de violações à liberdade de imprensa mais do que quadruplicou, passando de 130 ataques a 557, segundo monitoramento realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
A violência contra jornalistas escalou no ano eleitoral, quando o levantamento da Abraji identificou um crescimento de 69,2% nos casos de agressões graves, apenas nos primeiros sete meses de 2022. O que se seguiu no período pós-eleitoral foi ainda pior. Durante a cobertura jornalística de acampamentos diante de quartéis e bloqueios rodoviários, ambos promovidos por aliados de Bolsonaro, foram registrados quase 100 casos de violência, incluindo agressões físicas, incêndio criminoso em uma rádio e atentado a tiros contra o escritório de um site de notícias na Amazônia. Esses números representam ao menos um ataque à imprensa por dia no final de 2022, ano marcado pelas mortes do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, em junho, no Vale do Javari, no Amazonas.
Quando se olha para a violência de gênero, a situação é ainda mais alarmante. Foram 145 ataques explícitos de gênero e/ou agressões a mulheres jornalistas, segundo monitoramento da Abraji, com um aumento de 13% em relação a 2021. A forma mais comum de agressão (51%) é o discurso estigmatizante — aquele proferido por autoridades e figuras públicas para desqualificar o trabalho das profissionais de imprensa. Mesmo com tantos casos registrados, há uma clara subnotificação, pois muitas mulheres têm receio de perder o emprego ou de ser vítimas da violência on-line, com impacto em suas vidas pessoal e profissional, e decidem não denunciar agressores.
Outra forma de intimidação à imprensa brasileira tem sido o chamado assédio judicial. São evidentes os casos em que políticos e pessoas com grande influência econômica promovem múltiplos processos contra um mesmo jornalista — caso dos Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) contra um comentarista de uma TV pública — ou quando uma figura pública processa várias pessoas, entre elas jornalistas, caso do empresário Luciano Hang. Nessa situação, não se trata do direito de recorrer à Justiça por se sentir prejudicado por uma reportagem, mas de criar um sistema de pressão e sufocamento.
Por isso, a Abraji faz litigância estratégica, como os processos movidos junto à Suprema Corte para impedir o bloqueio do acesso de profissionais de imprensa por perfis de autoridades públicas no Twitter e contra o uso indiscriminado dos Juizados Especiais Cíveis — criados para facilitar o acesso à Justiça a quem não tem meios financeiros para pagar advogado, mas que passaram a ser usados na tentativa de calar jornalistas.
Mesmo com a mudança de governo no início de 2023, a imprensa brasileira ainda segue sob ataque. No ato golpista de 8 de janeiro em Brasília e nos dias subsequentes, registraram-se 45 casos de agressão física, ameaça, confisco de equipamento e impedimento de trabalho de jornalistas. Tal violência levou à produção de um dossiê entregue ao novo governo pela Abraji e por outras entidades que defendem a liberdade de imprensa. Essas organizações encontraram acolhimento com a criação do Observatório Nacional de Violência contra Jornalistas e Comunicadores, ligado ao Ministério da Justiça.
Há, neste início do governo Lula, uma tentativa, ao menos parcial, de restaurar as relações democráticas e de buscar uma volta à normalidade. Mas o rancor de descontentes com o resultado eleitoral ainda ecoa, com agressões inadmissíveis, como a vivida por uma equipe de reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, em fevereiro, durante a cobertura de deslizamentos de terra e enchentes. O país segue politicamente dividido e à sombra do que ocorreu nos últimos quatro anos.
Para além das boas intenções, o novo governo precisa agir para restabelecer os preceitos de uma imprensa livre, do acesso à informação e da transparência pública. Imposições recentes de sigilo sobre as visitas ao Palácio do Planalto mostram como o papel de vigilância dos poderes por parte da imprensa não pode esmorecer.
Algumas recomendações feitas pela Abraji em seu relatório anual de monitoramento de ataques à imprensa são direcionadas ao poder público e incluem o fortalecimento de políticas públicas de proteção a jornalistas, como o Programa de Proteção para Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH); o combate à impunidade em crimes contra jornalistas; a responsabilização de agentes públicos por agressões a jornalistas; e o avanço de propostas legislativas que protejam o trabalho de profissionais da imprensa, em atenção aos parâmetros internacionais de proteção dos direitos humanos. A expectativa é de que os ventos realmente indiquem mudanças.