Mentiras sobre a liberdade de expressão

Eugênio Bucci, jornalista e professor titular (full professor) da ECA-USP. Este artigo foi escrito para a edição 121 do boletim semanal do WBO, publicado em 14 de junho de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.


As enchentes no estado brasileiro do Rio Grande do Sul, que se estendem entre abril e maio de 2024, deixando um saldo de mais 170 mortos e mais de 735 mil desabrigados (até o dia 10 de junho de 2024), deram pretexto para uma nova avalanche de fake news. Em pequenos vídeos que circularam massivamente nas redes sociais (ou, mais precisamente, antissociais), uma profusão de mentiras tomou conta de todos os espaços. Algumas afirmavam ser inútil fazer doações para as vítimas, porque o governo federal estaria barrando caminhões que rumavam para o Rio Grande do Sul. Outras sustentavam que exército e os bombeiros negavam ajuda aos desabrigados. Como essas duas, houve – e ainda há – muitas outras fraudes. Em conjunto, elas prejudicaram o socorro às populações atingidas, semearam a confusão, ampliaram o caos, disseminaram o pânico e desacreditaram as autoridades e os voluntários que apoiavam operações de resgate e de ajuda. Todo esse material – alastrado por ativistas da extrema direita antidemocrática – piorou o desastre, que o sociólogo Sérgio Abranches chamou de “tragédia socioclimática”.

Por que as coisas chegaram a esse ponto nas nossas sociedades? Como a desinformação ganhou tanto impulso e por que ela corrói por dentro a democracia? Muitas explicações têm aparecido e merecem atenção. Neste breve artigo vou procurar expor com duas razões para o que se passa. Em parte, vou me valer de argumentos que apresentei recentemente num artigo para o jornal O Estado de S. Paulo (“A liberdade fake e o Marquês de Sade”, 16 de maio de 2024, p. A5).

Antes de tudo, é preciso levar em conta que a produção em larga escala dessas falsidades constitui uma atividade superindustrial, que mobiliza recursos caros e complexos, com uma característica essencial: funciona nas sombras. Os centros geradores dos conteúdos fraudulentos se escondem, não trabalham à luz do dia. São usinas invisíveis. Quem aparecem são alguns políticos da extrema-direita antidemocrática e as multidões de adeptos que trabalham de graça para espalhar a desinformação.

No meio desse espetáculo de horror e desprezo pela pessoa humana, um discurso em particular chamou a atenção. Os defensores das organizações que distribuíam fake news alegavam que os mentirosos apenas exerciam a sua “liberdade de expressão”. Com essa justificativa, produziam mais uma inverdade – e das mais graves.

Em primeiro lugar, é uma inverdade porque as agências clandestinas que fabricam industrialmente o material desinformativo não têm direito à liberdade de expressão. Não é difícil demonstrar por quê. A liberdade de expressão é um direito da pessoa humana, não de pessoas jurídicas ou de organizações criminosas. O Estado, as empresas e os partidos políticos não têm liberdade de expressão, pois não são pessoas humanas. Portanto, como venho afirmando, a liberdade de expressão é um direito humano, de gente de carne e osso, não uma licença econômica ou corporativa.

Em suma, quando uma big tech impulsiona falsidades que lesam a saúde pública e a integridade física de pessoas reais, não é de liberdade de expressão que estamos falando, mas de abuso do poder econômico. A finalidade desse abuso é manipular as massas com finalidades eleitorais escusas.

E quanto aos cidadãos – os infelizes que se deixam manipular – que trabalham de graça para espalhar as fraudes informativas? Estes, sim, têm o direito de liberdade de expressão, mas entenderam tudo errado. Concebem a liberdade como se ela fosse não um direito civilizado, mas uma espécie de porteira aberta para dar vazão a impulsos viscerais, animalescos e brutais. Para eles, a liberdade seria o triunfo do bicho sobre o humano. Com esse tipo de ideia na cabeça (na verdade, uma não-ideia), usam da própria liberdade para destruir a liberdade de todos os demais.

Num livro lançado há poucas semanas no Brasil (O mal-estar na cultura revisitado, organizado por Lucia Santaella, publicado pela Estação das Letras e Cores), o psicanalista Ricardo Goldenberg dá uma grande contribuição para entendermos essa mentalidade selvagem. Em seu ensaio, “Do cinismo ao descaramento”, Goldenberg localiza no Marquês de Sade (1740-1814) fantasia de que a “liberdade individual” incluiria um suposto “direito” de “gozar do próximo sem nenhum entrave” (“gozar”, aqui, é sinônimo de abusar).

Em Sade, acrescento eu, o sujeito “livre” junta o pior vício da aristocracia (dispor do corpo do outro como dispõe da terra) ao pior vício da burguesia (explorar energia do outro para acumular dinheiro e prazer). Trata-se de um sujeito amoral, assassino, torturador, pedófilo, estuprador e ditador. O que ele professa não é a liberdade que embasa a democracia, mas a liberdade fake, a liberdade sádica, que no fundo é a negação de toda liberdade.

Essa enfermidade da mentalidade social, esse enlouquecimento das massas, é parte da tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul – e um dos motivos do desmoronamento institucional que se manifesta em tantas democracias pelo mundo afora.


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