CEDAW e os direitos das mulheres: tão longe, tão perto

Denise Dora, coordenadora do Programa de Gênero e Liberdade de Expressão Artística do WBO. Este artigo foi escrito para a edição 120 do boletim semanal do WBO, publicado em 6 de junho de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.



 Em 1979, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou o primeiro tratado internacional sobre direitos das mulheres. O documento foi fruto de décadas de lutas feministas, que incluíram os movimentos abolicionistas, sufragistas, de liberação sexual, de independência e anticolonialistas, pelo direito ao trabalho e educação das mulheres. A CEDAW (Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher) entrou em vigor internacionalmente em 1981, e foi ratificada pelo Brasil em 1984, não sem muita polêmica. Naquele momento, o Brasil ainda vivia uma ditadura civil-militar e suas leis civis remontavam ao início do século XX, com conceitos como “chefia da sociedade conjugal”, “crimes de honra”, e outros que subordinavam as mulheres às hierarquias familiares legalmente. A CEDAW pretendia acabar com isso, e o governo relutou em adotá-la, fazendo-o parcialmente apenas.

Foram necessários mais alguns anos de luta para que, em 1988, a Constituição Federal brasileira instituísse a igualdade entre homens e mulheres (pela primeira vez na história do país!!), e mais alguns anos para que o Congresso voltasse a revisar a Convenção CEDAW e a aprovasse integralmente, em todos os seus aspectos, da vida familiar à vida pública. Finalmente, em setembro de 2002 foi aprovado o Decreto 4377 que promulgou a CEDAW no Brasil.

Em seus 30 artigos, a CEDAW define o que é discriminação, “ Para os fins da presente Convenção, a expressão "discriminação contra a mulher" significará toda a distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”, e elenca os direitos fundamentais das mulheres que devem ser observados pelos Estados, que assumem assim a responsabilidade por defendê-los e implementá-los.

A ONU, quando aprova um tratado internacional, cria também seus mecanismos de seguimento e aplicação, no diálogo com os países membros. A CEDAW tem então um comitê de especialistas independentes que se reunem regularmente para examinar a condição das mulheres em seus países, e verificar se os Estados estão cumprindo com suas obrigações. Como acontece isso? A cada quatro anos, os países devem enviar um relatório descrevendo seus desafios e suas políticas no setor, apresentando um balanço de suas ações. Nesse momento, a sociedade civil pode também aportar informações e enviar seus relatórios próprios; e com todos esses insumos, o Comitê se reúne em sessão oficial em Genebra para examinar as questões e para ouvir o Estado em uma sabatina pública. Logo depois, ponderando a apresentação do Estado e das organizações feministas e de direitos humanos, o Comitê CEDAW apresenta suas recomendações para o Estado-membro.

Pode parecer um pouco abstrato e distante, mas não é. Acabamos de passar por tudo isso, como uma experiência concreta, vivida, sonhada, sofrida às vezes, e recheada de lições. Vamos lá: o Brasil não apresentava seu relatorio desde 2012, portanto deixou de apresentar três relatórios à CEDAW, exatamente nesta década conturbada onde as mulheres, e seus direitos, têm sido muito atacados. Assim, a apresentação do Ministério das Mulheres teve que cobrir os últimos anos do governo Dilma, o governo Temer, o (des)governo Bolsonaro e o primeiro ano do governo Lula, relatando o zigue-zague de pouco ganhos e muitas perdas.

Sabendo do desafio de examinar este período e definir as responsabilidades do Estado brasileiro, diversas organizações da sociedade civil apresentaram também seus relatórios temáticos, e criou-se uma “cobertura colaborativa”, a partir da iniciativa do WBO para ampliar, facilitar e democratizar o acesso ao debate de um tratado internacional.

Esta cobertura colaborativa teve os seguintes elementos e momentos: 1. uma oficina informativa online sobre a Convenção CEDAW, com um pouco de sua historia e conceitos fundamentais dia 7 de maio; 2. uma oficina informativa online sobre o Comitê CEDAW, seu funcionamento, suas integrantes, seus rituais e suas tarefas em 14 de maio; 3. a construção de um documento-sumário com todos os 42 relatórios apresentados pela sociedade civil, comparando com o relatório do governo brasileiro para compartilhamento com as organizações; 4. uma sessão online de 3 horas que acompanhou a sabatina na sala da ONU em Genebra em 23 de maio, com a delegação oficial brasileira apresentando seu relatório, e que foi acompanhada por comentaristas da sociedade civil durante todo o período; 5. o monitoramento da elaboração das recomendações para melhoria que o Comitê CEDAW faria ao Brasil, e que foram publicizadas em 3 de junho; 5. a tradução para o português dessas recomendações para compartilhamento e 6. um encontro online e presencial para balanço do processo, análise das recomendações e debate sobre próximos passos em 5 de junho. Em todos estes momentos contamos com a ampla presença de grupos e ativistas feministas, com a experiência potente do movimento de mulheres negras e de mulheres indígenas, com os sindicatos de trabalhadoras domésticas, com as mulheres trans, que pensaram e agiram em coalizão, reforçando a importância de seguirmos criativamente estes processos internacionais que parecem tão longe, mas ao final são cerca, próximos, ao nosso alcance, desde possamos compartilhar este percurso.


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