O espaço e o papel das mulheres negras na diplomacia brasileira
Elaine Gomes é diplomata (segunda-secretária) lotada na Missão do Brasil junto às Nações Unidas, onde trata, entre outros temas, de combate ao racismo. Foi bolsista do Programa de Ação Afirmativa do IRBr e ingressou no SEB por meio do sistema decotas. É mestra em estratégia (Master of Arts in International Affairs - Strategic Studies), com mérito, pelo King’s College de Londres. Este artigo foi escrito por ela para a edição 107 do boletim semanal do WBO, publicado em 8 de março de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.
Em março celebram-se o Dia Internacional da Mulher, o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial e o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Tráfico Transatlântico. Este artigo é um convite à reflexão sobre o passado, o presente e o futuro das mulheres negras no Brasil, especialmente em relação à sua representação no Serviço Exterior Brasileiro (SEB).
Ao tratar da situação das pessoas negras (pretos e pardos) no Brasil, é imperativo reconhecer que o passado ainda se faz presente. Após a abolição da escravatura, homens e mulheres até então escravizados não foram plenamente incluídos como cidadãos. Ademais, nem eles ou seus descendentes, que, até então, eram considerados propriedade, receberam reparações. No século XIX, criaram-se obstáculos ao seu acesso a terra, trabalho remunerado e educação. Nesse mesmo período, teses deterministas derivadas do positivismo associaram características físicas dos negros e negras à imoralidade, à falta de inteligência e à violência: estereótipos negativos que permanecem até hoje. O relativismo cultural e o multiculturalismo do século XX inspiraram teses que, ao tentaram superar perspectiva pessimista do determinismo sobre a população brasileira, foram ao limite de sugerirem haver, no Brasil, uma democracia racial. Ideia que, por décadas, impediu e que, em alguma medida, ainda impede a sociedade brasileira de enfrentar suas contradições.
Um dos objetivos fundamentais da República Brasileira, nos termos da Constituição de 1988, é promover o bem de todos. Atingir esse objetivo em termos de igualdade racial significa desatar os nós por meio dos quais a sociedade brasileira foi construída, enquanto se manteve parte substantiva da população marginalizada, e construir uma rede de solidariedade com oportunidades para todos. Aproximadamente 55,5% dos brasileiros se auto-identificam como negros, e as mulheres negras totalizam um terço da população do Brasil. São diversos os dados que evidenciam as amarras do passado se estendendo ao presente da população negra. Sua renda corresponde, em média, a 60% da renda de pessoas brancas. A renda das mulheres negras corresponde a 60% da renda de mulheres brancas e a menos de 45% da renda dos homens brancos. O percentual de mulheres brancas com educação superior é duas vezes maior do que o de mulheres negras com essa titulação. Educação e renda são meios incontornáveis de acesso a bens e serviços necessários ao ingresso nos altos escalões da administração pública. Essas informações são essenciais para a compreensão de dados relativos à situação das mulheres negras na administração pública federal, especialmente no SEB.
Desde 2023, o Itamaraty tem publicado internamente boletins estatísticos sobre raça e gênero no SEB. A segunda edição do boletim estatístico sobre raça, publicada em fevereiro, é bastante elucidativa sobre a (sub)representação de mulheres negras. O maior grupo populacional do Brasil representa 3,23% dos diplomatas (51 de 1578) e 13,85% das mulheres diplomatas (51 de 368). Essa disparidade seria ainda maior não fosse a implementação de políticas de ação afirmativa, como o Programa de Ação Afirmativa (PAA) do Instituto Rio Branco e as Leis 12.711/2012 and 12.990/2014, que estabeleceram sistemas de cotas para o ingresso em universidades públicas e na administração pública federal. Atualmente, não há nenhuma mulher negra embaixadora (ministra de primeira classe) no quadro ordinário da carreira de diplomata e 78,43% das diplomatas negras estão concentradas nos estratos mais iniciais da carreira até o cargo de primeira-secretária, uma consequência da implementação de ações afirmativas apenas a partir dos anos 2000 e de sua concentração na admissão ao Itamaraty.
A publicação do boletim, baseado em autoidentificação, é bem-vinda. Ao lançar luz sobre a situação atual das mulheres negras no SEB, o Itamaraty dá um passo necessário para pensar em formas de corrigir disparidades. Não é possível superar um desafio sem, primeiramente, se admitir que ele existe. O boletim é parte de uma abordagem positiva que a administração atual tem dedicado à promoção da diversidade, a qual inclui outras medidas como a criação de Sistema para a Promoção de Diversidade e Inclusão e de Assessoria de Participação Social e Diversidade, bem como da nomeação de uma Alta Representante para Temas de Gênero. É necessário destacar, ademais, que mulheres negras representam aproximadamente 10% dos oficiais de chancelaria e 24% dos assistentes de chancelaria. Considerando a sub-representação de mulheres negras no SEB, especialmente entre diplomatas, percebe-se a necessidade de aperfeiçoamento e de complementação das ações afirmativas vigentes com medidas adicionais, para que se consiga alterar de maneira tangível a realidade vigente, e a administração atual tem se mostrado comprometida com essa agenda.
Em discurso proferido em novembro passado, em celebração do Dia da Consciência Negra, o Ministro Mauro Vieira expressou seu compromisso com a priorização da liderança e da progressão funcional de negros, em especial de mulheres negras. Refletindo sobre o futuro, recordemos que a Assembleia Geral das Nações Unidas decidiu proclamar, em 2024, a segunda Década Internacional de Afrodescendentes. Que o Brasil possa aproveitar essa oportunidade para aumentar de maneira consistente a representação de mulheres negras no SEB, especialmente nas carreiras em que a sub-representação é maior, e para lhes ensejar meios de participação efetiva na execução da política externa brasileira.
As opiniões aqui expressas são pessoais e não representam o Ministério das Relações Exteriores