Porque precisamos discutir e encontrar parâmetros para a chamada “integridade da informação”?
Nina Santos é diretora do Aláfia Lab, coordenadora geral do *desinformante e pesquisadora no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD) e no Centre d'Analyse et de Recherche Interdisciplinaires sur les Médias (Université Panthéon-Assas). Este artigo foi escrito por ela para a edição 106 do boletim semanal do WBO, publicado em 1º de março de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.
O termo “integridade da informação” tem sido cada vez mais usado, sobretudo por organismos internacionais e agora também pelo governo do Brasil. Em 2023, pelo menos quatro instrumentos de cooperação entre o Brasil e outros países, com esse termo, foram assinados. No contexto da presidência brasileira do G20, essa ideia tem ganhado ainda mais destaque e tem pautado ações relativas ao combate à desinformação, ao discurso de ódio, à defesa da regulação de plataformas digitais e à construção de um espaço digital dito democrático ou saudável.
Tudo isso tem certamente um fator muito positivo, mas o fato é que apenas há literatura acadêmica em inglês sobre a ideia de integridade da informação, o que dificulta a construção teórica e política do termo a partir de uma perspectiva global.
Retraçando o histórico do termo “information integrity"
A expressão “integridade da informação” ganha notoriedade global sobretudo a partir do Policy Brief 8, publicado pela ONU em junho de 2023. Neste documento, integridade da informação se refere à "acurácia, consistência e confiabilidade da informação. Ela está ameaçada pela desinformação, pela informação incorreta e pelo discurso de ódio".
Pouco mais de um ano antes, em fevereiro de 2022, o PNUD havia publicado o documento "Information Integrity: Forging a Pathway to Truth, Resilience and Trust”, em que conceitua integridade da informação como sendo "determinada pela ‘precisão, consistência e confiabilidade do conteúdo, dos processos e sistemas de informação para manter um ecossistema de informação saudável’”.
Seguindo as poucas referências mencionadas nos documentos de organismos internacionais, fica perceptível que a ideia de “information integrity” aparece muito próxima de tentativas de proteção de ecossistemas de comunicação, especialmente de países de fora do eixo ocidental. É preciso dizer ainda que a totalidade das referências usadas não apenas é de organizações situadas no norte global, mas também baseiam-se em exemplos e casos concretos desses países.
1. Os problemas do termo como está
É necessário enfatizar o foco no espaço e no fluxo, não na unidade
A ideia de "information integrity" e especialmente a tradução "integridade da informação" pode dar a impressão de que o foco está na unidade da informação, que precisaria ser íntegra. Ou seja, haveria um emissor, produtor da informação, que publicaria uma unidade informacional que deveria ser protegida, mantida na íntegra até sua recepção. Uma ideia em dissonância com o cenário de comunicação que temos hoje.
Além disso, a ideia de integridade da informação pode dar a entender que o problema estaria na entrega de uma informação íntegra ao cidadão. Ou seja, ao receber uma informação íntegra, o cidadão teria condições de exercer plenamente sua cidadania. Precisamos, no entanto, considerar que a recepção pode ser problemática - como muitas vezes é - e isso também é um problema comunicacional. Não basta que a informação chegue de maneira íntegra até os cidadãos e cidadãs, é preciso que ela faça sentido dentro de uma visão de mundo. São processos comunicacionais, mas não é apenas a integridade da informação que será capaz de contê-los.
Um terceiro ponto que precisa ser discutido decorre do fato de que é necessário considerar que grande parte dos problemas do cenário comunicacional atual está nos fluxos. Os caminhos digitais que a informação percorre para chegar ao cidadão (especialmente aqueles que passam pelas plataformas digitais) passam a ter intermediários que não existiam no modelo anterior de comunicação. Portanto, existe uma série de problemas que não estão na informação em si, mas no ambiente por onde ela circula, que impacta diretamente seus efeitos sociais. Para fazer um paralelo, quando se fala em integridade de eleições, tratamos de “integridade eleitoral” e não em “integridade do voto”. É no sistema que se pensa, no funcionamento social que uma soma de mecanismos tem, e não na unidade da decisão do eleitor.
Importação sucessiva de conceitos e imaginários do norte global
Esses problemas na interpretação do termo são acentuados pela tradução mais usada em português: “integridade da informação”. Ela tem um sentido muito mais unitário e menos sistêmico que o original em inglês. O problema de fundo é que, uma vez mais, estamos importando um conceito externo sem grande discussão. Isso dificulta a escolha por uma tradução – e, portanto, por um sentido social – já que não há acúmulo sobre o que ele de fato quer dizer.
Boa parte da discussão sobre o novo cenário comunicacional tem se pautado em termos estrangeiros que simplesmente não têm tradução precisa em português. Foi assim com fake news, que, como vários autores já ressaltaram, não é a mesma coisa de “notícia falsa”. Foi assim também com a diferença entre “misinformation” e “disinformation”, que é impraticável em língua portuguesa e que acabou colocando tudo no mesmo balaio da desinformação.
Agora vamos nós, uma vez mais, adotar um termo – e um imaginário – estrangeiro simplesmente tentando encontrar uma tradução linguística, sem pensar no real significado dele. É uma ideia que embute uma visão de comunicação que não dá conta dos nossos problemas.
2. A oportunidade de construção de uma agenda informacional a partir do Sul
Se, em 2014, o Brasil consolidou sua posição de liderança internacional com a aprovação do Marco Civil da Internet e a realização da NetMundial, este ano as possibilidades são ainda maiores. Em 2024, momento de novo protagonismo internacional do Brasil em que os debates sobre informação estão no centro da pauta, temos a oportunidade de pensar em uma proposta brasileira para o mundo; uma que considere a realidade brasileira, da América Latina, dos BRICS, do Sul Global, e use isso como insumo para formular quais são os parâmetros efetivamente importantes para nós, no ambiente comunicacional digital.
Quando falamos de comunicação e informação no Brasil e em países do Sul global estamos frequentemente falando de realidades amplamente dominadas pelo jornalismo comercial, hegemônico e extremamente concentrado; estamos falando de muitos países em que a comunicação por aplicativos de mensagens é absolutamente central; estamos tratando de democracias jovens e muitas vezes instáveis; estamos nos referindo a sociedades com níveis de desigualdade social abissais, que impactam na forma como as pessoas consomem informação; estamos falando de países onde não apenas circula discurso de ódio, mas ele serve para reforçar opressões históricas, como é o caso do racismo; estamos tratando de países fortemente impactados por problemas socio-ambientais; e, com toda ênfase necessária, estamos falando de países que estão física e imaginariamente longe das sedes das big techs, que sucessivamente tratam esses países e seus cidadãos como de segunda classe.
Nosso desafio é levar ao mundo uma proposta de parâmetros inovadores, criativos e propositivos do que queremos de um espaço comunicacional democrático.