A luta pelo poder EUA-China e seus efeitos em cascata no Brasil e na América Latina

Dawisson Belém Lopes é professor de política internacional e comparada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no Brasil. Foi acadêmico visitante no Centro Latino-Americano da Universidade de Oxford (2022-23) e bolsista SUSI sobre política externa dos EUA na Universidade de Delaware (2021). Este artigo foi escrito por ele para a edição 105 do boletim semanal do WBO, publicado em 23 de fevereiro de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.


O atual cenário geopolítico na América Latina é marcado pela intensificação da competição entre os Estados Unidos e a República Popular da China, as duas superpotências globais. Este ensaio, elaborado do ponto de vista brasileiro, investiga o cenário histórico, a evolução da dinâmica e os efeitos colaterais dessa luta pelo poder na região. Do meu ponto de vista, a situação parece ter grandes consequências.

Iniciando esta análise com uma afirmação teórica ousada sobre a América Latina, pode-se afirmar com razão que a região se distingue como a porção mais ocidentalizada do Sul Global. Apresenta características comuns com o Ocidente em termos de religião, língua, instituições legais, capitalismo de mercado e democracia representativa – uma tendência que é notavelmente evidenciada pelo Brasil. Com base nesta premissa, diversas reverberações podem se manifestar.

Desde o início do século XX, os Estados Unidos têm desempenhado um papel significativo como principal parceiro comercial da América Latina, ultrapassando a Europa e solidificando a sua posição como o ator externo mais influente da região. No entanto, esta tendência ganhou ainda mais impulso no século XXI, quando a China ultrapassou os Estados Unidos como principal destino de exportação dos países latino-americanos. Não é de surpreender que esta alternância na política externa tenha trazido inúmeras implicações nesta parte do globo que habitamos.

A América Latina, com exceção de Cuba, permaneceu sob a égide dos Estados Unidos durante a Guerra Fria e optou por não aderir ao Movimento dos Não-Alinhados no final da década de 1950 e início da década de 1960. O Brasil, embora adotando consistentemente uma política externa terceiro-mundista, especialmente do ponto de vista econômico, desviou-se da abordagem da Conferência de Bandung ao alinhar-se diplomaticamente com Washington.

Embora a China tenha aumentado a sua presença na América Latina através de investimentos e títulos comerciais ao longo dos anos, esta mudança nunca significou um recuo inexorável na influência política para os Estados Unidos. Sem falar que Washington mantém uma vantagem cultural na região: andando pelas ruas de Manágua, Bogotá, Assunção ou Rio de Janeiro, não se observaria nada que se assemelhasse a um “modo de vida chinês”; muito pelo contrário.

“O presidente brasileiro navega com ambivalência pragmática no braço de ferro EUA-China, ao mesmo tempo que prossegue uma abordagem diplomática autônoma”

Dawisson Belém Lopes, professor de política internacional e comparada na UFMG

No entanto, o declínio da participação dos EUA no PIB global, caindo de 40-45% em 1945 para escassos 14% em 2023, reflete o distanciamento gradual da América Latina das visões do mundo da Casa Branca. Isto é evidente nos padrões de votação na Assembleia Geral da ONU. No caso do Brasil, durante as administrações presidenciais de Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek, os representantes do país alinharam-se com os diplomatas americanos a uma taxa de 90%. Hoje, o percentual de convergência entre o Brasil e os EUA não ultrapassa muito os 25%. Esta tendência geral aplica-se também ao resto da América Latina.

Ainda assim, há uma camada adicional a considerar – desde o início da década de 1970, quando a China continental substituiu Taiwan nas Nações Unidas, a América Latina e o Brasil, especialmente no contexto das votações na Assembleia Geral da ONU, têm demonstrado proximidade com os delegados chineses. Esta ligação tem uma lógica fundamental: tanto a República Popular como os países latino-americanos partilharam, durante décadas, preocupações semelhantes relacionadas a desenvolvimento, finanças, paz e segurança, descolonização, direito internacional e outras questões. Essa mentalidade diplomática não pode ser subestimada.

Outro fator crucial a salientar, dada a crescente polarização dos assuntos globais, é a posição assertiva assumida por países como Brasil, Chile, Colômbia e México em relação aos conflitos internacionais de hoje, como os da Ucrânia e de Gaza. Pode argumentar-se que a região já não está a emitir um cheque em branco ao Ocidente/EUA, indicando resistência à influência unilateral. Neste contexto de segurança internacional, a capacidade cada vez menor dos Estados Unidos para cooptar a América Latina serve como um sinal de alerta.

À medida que os EUA e a China competem pela influência através de estratégias como a escoramento de amigos, a escoramento próximo e a dissociação, o Brasil e o México emergem como beneficiários líquidos. Os EUA designam o México como seu parceiro comercial e destino de investimento preferido, enquanto a China dirige investimentos substanciais e importa mercadorias do Brasil. Em suma, tanto Brasília quanto Ciudad de México têm motivos de sobra para estarem satisfeitas com a situação atual.

Buenos Aires, por outro lado, corre o risco de se distanciar de Washington e Pequim. Apesar do tom acolhedor em relação ao Ocidente dado pelo recém-empossado presidente Javier Milei, a Argentina já se comprometeu anteriormente com acordos e iniciativas, sugerindo uma posição pró-China. A transição que se avizinha pode não decorrer tão bem como o discurso de campanha de Milei sugeria. A dinâmica contínua da competição EUA-China continuará, sem dúvida, a moldar o futuro geopolítico da nação, e só o tempo revelará toda a extensão do seu impacto.

À medida que o Brasil de Lula resiste a tornar-se um receptor meramente passivo de influência externa, o cenário que se desenrola pode significar o teste decisivo do seu terceiro mandato. As acusações de implementação de uma política externa anti-EUA ou anti-Ocidente podem ser vistas sob uma luz diferente, sugerindo que o presidente brasileiro está a navegar com ambivalência pragmática no braço de ferro EUA-China, ao mesmo tempo que prossegue uma abordagem diplomática autônoma. Afinal, a proatividade e a autoconfiança não devem ser mal interpretadas como uma atitude desafiadora ou não colaborativa.


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