O ovo da serpente
Ricardo Seitenfus é doutor em Relações Internacionais pelo Institut de Hautes Études Internationales da Universidade de Genebra, Vice-Presidente do Comitê Jurídico Interamericano e Representante da OEA no Haiti (2009-11) e na Nicarágua (2011-13). Professor universitário e autor de duas dezenas de livros publicados em espanhol, francês, inglês e português. Este artigo foi escrito por Seitenfus para a edição 104 do boletim semanal do WBO, de 16 de fevereiro de 2024. Para assinar, insira seu email no campo abaixo.
Salta aos olhos a extraordinária estabilidade do mapa político das Américas quando comparado aos demais continentes; mormente o europeu, berço de duas guerras mundiais. Os editores dos mapas do Velho Continente se regozijam ao passo que os professores e alunos são levados a reaprender de maneira incessante sobre uma realidade fugidia. O que era verdade para uma geração se transforma em sacrilégio para a seguinte.
Aplicado ao Direito dos Tratados no Novo Mundo, o princípio do pacta sunt servanda, (obrigatoriedade do cumprimento do que foi acordado), pedra angular do Direito Civil, trouxe estabilidade e permanência às nossas fronteiras territoriais. Embora muitas destas tenham resultado de sangrentos conflitos, de acertos impostos pelo vencedor, de tratados desiguais, de corrupção de agentes diplomáticos e de outras mazelas, elas foram e são intocáveis.
Ao que parece, no entanto, a histórica tradição das relações interamericanas está prestes a ser rompida pelo ditador venezuelano Nicolás Maduro Moros. Numa extraordinária jogada, digna dos maiores mestres do xadrez internacional, sem estampidos, ausente o ruído de botas e munido unicamente da ousadia de seu gogó, ele apropria-se do Essequibo, que equivale a 2/3 do território de seu vizinho guianês.
A vítima deste Anschluss sul-americano é um dos países mais pobres do hemisfério ocidental, acusado por Maduro de ser um usurpador a serviço do “imperialismo”.
Um suposto “referendo” foi realizado às pressas; cujo resultado, apesar de pouco concorrido, foi apresentado como aval do eleitorado para a aventura madurista. Além de um exemplo grotesco das singularidades dos ditadores sul-americanos, bem descritos por Gabriel Garcia Márquez, essa consulta é uma afronta ao Direito dos Tratados. A propósito, ela abriga um aspecto ubuesco na medida em que deveriam ser ouvidos os habitantes de Essequibo ou os guianeses e não os venezuelanos.
Prossegue o teatro do absurdo – num passe de mágica o Essequibo é incorporado à Venezuela com as seguintes iniciativas: monopólio da PDVSA para a exploração de gás e petróleo na região; criação do Alto Comissariado para a Defesa da Guiana Essequiba; publicação e divulgação do novo Mapa da Venezuela em escolas e universidades do país; criação da Zona de Defesa Integral da Guiana Essequiba; nomeação de autoridade única da Guiana Essequiba; programa de assistência social à população e expedição de uma nova carteira de identidade para os cidadãos de Essequibo. Desde logo, desprovidos de sua nacionalidade guianense e transformados em venezuelanos!
Como todo ditador, Maduro tem um objetivo simples: criar um inimigo externo para melhor aferrar-se ao poder. O general argentino Leopoldo Galtieri ao invadir as ilhas Malvinas (Falkland), em 1982, perseguia o mesmo objetivo e cometeu erro parecido.
Terá Maduro destino distinto? Excetuando Washington e Londres, o restante do mundo mira embasbacado, entre surpresos e dúbios protestos. Alguns, incrédulos e aparentemente pouco à vontade, tentam esconder sua admiração por essa obra de arte da política internacional. Entre estes está o Brasil.
Há, no mínimo, três razões que tornam Brasília incontornável nesta crise. Por um lado, somos o único país a fazer fronteira com os dois contendores e com a região de Essequibo. Inclusive uma eventual operação militar terrestre deverá envolver forçosamente o território brasileiro.
Por outro lado, em 1904 o Brasil acatou, embora desfavorável, o Laudo Arbitral no litígio de Pirara com o Reino Unido, parte integrante da mesma disputa territorial de Essequibo.
Enfim, o mais importante: a estratégia de Maduro coloca em questão a intangibilidade das fronteiras na América do Sul, princípio fundador da política exterior brasileira construída pelo Barão do Rio Branco.
O respeito intransigente ao Direito como fim e a Diplomacia como meio, fez do Brasil o inconteste campeão da estabilidade territorial. Além de ganhos estimados em 900 mil km2, a tática trouxe segurança e paz. Notável foi também a atitude brasileira frente à arbitragem que não lhe concedia o esperado. Assim aconteceu com a decisão da Confederação Suíça no litígio para definir a fronteira com a Guiana Francesa e com o litígio de Pirara. Em ambos os casos, acatamos as decisões. O que deveria prevalecer eram os fundamentos jurídicos e o Direito. Ponto.
Todavia surgem indícios que o legado do Barão do Rio Branco está sendo deixado à margem pelo atual governo na suposta celeuma relativa a Essequibo, abrindo uma fresta para possíveis futuras contestações, colocando em risco a paz regional.
Patrocinando negociações entre as Partes, Brasília age de maneira imprevidente concedendo indevida importância aos meios diplomáticos, quando deveria ater-se única e exclusivamente aos fundamentos jurídicos.
Quais seriam estes? O primeiro é o respeito à arbitragem de 1899 que concedeu o território ao Reino Unido. O segundo documento jurídico a ser respeitado em sua integralidade é o Acordo de Genebra de 1966 firmado entre Londres e Caracas cuja validade foi reconhecida por Georgetown por ocasião de sua independência. Infelizmente, no afã de se libertar de sua colônia, o Reino Unido aceitou firmar o documento escancarando a porta para uma decisão judicial distinta aquela estabelecida em 1899. Contudo, ficou também definido que será única e exclusivamente sob os auspícios do Secretário Geral da ONU que o futuro de Essequibo será decidido.
Ao contrário da resposta dos eleitores consultados – e manipulados – por Nicolás Maduro Moros, António Guterres indicou que a Corte Internacional de Justiça deve pronunciar-se sobre o caso. Esta deveria ser a inarredável posição brasileira.
Agora é tempo do Direito e não da Diplomacia. Caso contrário estaremos incubando o ovo da serpente como transparece na recusa da Bolívia e do Suriname de firmar a Declaração do Rio de Janeiro de 7 de dezembro de 2023 que defende a paz regional e preconiza solução pacífica para os litígios.