Perspectivas para Uma Agenda de Direitos Humanos do Brasil em 2024 – Os Desafios e o Valor da Experiência Doméstica

Paulo Lugon Arantes é jurista, expert em proteção internacional dos direitos humanos e coordenador para o Programa Europa do WBO (Washington Brazil Office). Possui bacharelado em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal do Espírito Santo, UFES (1999); LL.M. em Proteçāo Internacional e Europeia de Direitos Humanos pela Universidade de Utrecht (2003); e doutorado com enfoque em discriminação racial pela Katholieke Universiteit Leuven (2019). Atualmente é professor, consultor e parecerista com extenso trabalho no sistema ONU de Proteção dos Direitos Humanos. Este artigo foi escrito por Arantes especialmente para a edição 103 do boletim semanal do WBO, de 9 de fevereiro de 2024. Para assinar o boletim, insira seu email no campo abaixo.


O Brasil inicia em 2024 uma agenda internacional em direitos humanos, desenvolvimento e temas sociais repleta de oportunidades e desafios. Ter resistido a uma tentativa de golpe militar em pleno 2023, mesmo enfrentando em casa uma agenda muito conservadora, confere ao país uma imagem de solidez. A imagem do presidente Lula, andando de mãos dadas com membros dos três Poderes no Palácio do Planalto é histórica e tem um impacto internacional positivo, demonstrando união, diálogo e força.

O Brasil também terá desafios pela frente nessa agenda internacional, particularmente em um mundo cada vez mais polarizado, remetendo-se à Guerra Fria. Para entender esses desafios, é importante lembrar que, ao sair do seu próprio regime ditatorial e se redemocratizar, o país prontamente aderiu aos tratados de direitos humanos e garantiu êxito na difícil negociação da Declaração de Viena de 1993, que remodelou a arquitetura da ONU em direitos humanos. Nesse contexto, o país reafirma a universalidade e interdependência dos direitos humanos, em um gesto de não alinhamento automático. Assim, ratificou, quase ao mesmo tempo, os dois Pactos Internacionais da ONU: sobre direitos econômicos, sociais e culturais; e sobre direitos civis e políticos, dois instrumentos adotados separadamente pelas óbvias divisões ideológicas à época. Essa pedra de toque pauta a diplomacia brasileira e reflete na sua reputação de honest broker entre o Norte e o Sul globais e entre os diversos debates de direitos humanos.

Em Genebra, o Brasil reassume em 2024 uma cadeira como membro do Conselho de Direitos Humanos. Foi um dos grandes incentivadores da criação desse novo órgão reforçado em 2006, em um quadro de queixas quanto à seletividade da antiga Comissão. Ainda no Conselho, o Brasil tem uma posição difícil de mitigar esta seletividade, privilegiando o diálogo e a cooperação e evitando a mera condenação política.

Ainda este ano, o Brasil assumiu a presidência do G-20, com uma forte pauta de combate à pobreza e de gênero, com várias reuniões em Teresina, Rio de Janeiro e Brasília. Inaugurou também 2024 com um BRICS expandido, com a Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Irã e Etiópia, em uma proposta de uma nova ordem econômica, mais inclusiva, justa e solidária.

A difícil tarefa do Brasil é manter uma certa coerência política, em um universo de parceiros tão variados em uma situação de enorme polarização global. Por exemplo, os interesses dos membros do BRICs, como um bloco, não são transpostos integralmente ao Conselho de Direitos Humanos. Foi implantando em Genebra um mecanismo investigativo sobre a Rússia. A China e a Índia têm uma posição de princípio contra mecanismos de países, não tendo o Brasil tal posição automática, embora exerça bastante cautela nessa questão. Já para a sessão de março estão pautados em Genebra debates sobre a situação do Irã, da Rússia e da Palestina (esta com item fixo na agenda do Conselho).  Da região, haverá a questão da Nicarágua e da Venezuela, onde a diplomacia bolsonarista adotou um alinhamento automático. Ao mesmo tempo, o Brasil apoia com os BRICS processos caros aos debates globais de direitos humanos, como o novo tratado sobre direito ao desenvolvimento (liderado pelo G77) o novíssimo mecanismo sobre direitos dos camponeses e a resolução sobre solidariedade internacional.

A envergadura e diversidade das resoluções lideradas, sozinhas ou em conjunto, pelo Brasil demonstram, por outro prisma, o seu desafio. O Brasil é do grupo formador da resolução sobre orientação sexual e identidade de gênero (OSIG), da resolução sobre direito à privacidade na era digital, enquanto lidera a resolução sobre o direito à saúde, tentando mostrar ao mundo que não há temas irreconciliáveis. Por exemplo, a atual relatora da ONU sobre o direito à saúde, Tlaleng Mofokeng, pelo seu trabalho atual, demonstra que, sim, é possível (e necessário) integrar OSIG, racismo, gênero e direito à saúde, costurando um abismo artificial que é resíduo da Guerra Fria, e demonstrado que direitos não devem ser tratados em silos.

“O Brasil também terá desafios pela frente nessa agenda internacional, particularmente em um mundo cada vez mais polarizado, remetendo-se à Guerra Fria”

Paulo Lugon Arantes é coordenador para o Programa Europa do WBO

Obviamente, o Brasil não se propõe a uma adesão sistemática ao conjunto dos seus parceiros, do Norte e do Sul globais. É do próprio exercício diplomático as inevitáveis incoerências e lacunas, resultado da busca pelo que é possível dentro que cada negociação. O importante é analisar como o país introjeta e valida esses encontros e desencontros, de acordo com sua própria sociedade. A sociedade civil brasileira tem um conceito bem marcado da política externa como política pública.

O Brasil também tem o desafio de continuar dando exemplo na concessão de vistos humanitários, desta vez para os palestinos, em atenção aos chamados da ONU para a comunidade internacional cooperar com a situação humanitária daquele país.

A 55ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos, que se inicia dia 26 de fevereiro, contará com a presença do ministro Sílvio Almeida, durante o Segmento de Alto Nível, o qual exporá à comunidade internacional as ações do primeiro ano de governo Lula e a visão do país como novo membro do Conselho.

A melhor marca do Brasil é aquela advinda da sua própria experiência interna. O Brasil historicamente lidera na ONU a resolução sobre a incompatibilidade entre democracia e racismo, resultando em um estudo seminal do então relator sobre racismo, Doudou Diène. O tema é mais do que atual e necessário, com a ascensão aguda da extrema-direita em casa, nas Américas e na Europa, com pesquisas preocupantes sobre a composição do Parlamento Europeu e de seus países membros. A resiliência do 8 de janeiro tem um enorme potencial para ser transmutada em uma prática interna difícil, e por isto realista e positiva.


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