O governo Lula e o desafio da desigualdade
Paulo Correa é diretor executivo do Brasil no BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). Foi economista do Banco Mundial e Secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda durante o segundo mandato de Dilma Rousseff. Este artigo foi escrito por Correa para a edição 102 do boletim semanal do WBO, distribuído em 2 de fevereiro de 2024. Para assinar o boletim, insira seu e-mail no formulário abaixo.
O primeiro ano do terceiro mandato do presidente Lula apresentou resultados promissores na economia e na área social.
Medidas de priorização de gastos e de revisão de isenções tributarias, e um plano para aumento da arrecadação tributária em 1% do PIB ajudaram a conter o déficit público. A adoção de um novo marco fiscal melhorou a governança orçamentária. A aprovação de uma reforma tributária que esteve sob discussão por quase três décadas simplificará radicalmente um dos mais complexos sistemas tributários do mundo. O ano de 2023 terminou com inflação controlada, crescimento econômico acima do previsto, sólida expansão do emprego formal e redução do risco-país.
O programa Bolsa Família foi expandido, a política de aumento real do salário-mínimo foi retomada e a lei que garante igualdade salarial entre homens e mulheres foi sancionada. As políticas de saúde, inclusive as voltadas para a população indígena, e de educação estão sendo recuperadas. O Programa Nacional de Alimentação Escolar, por exemplo, foi retomado e um novo programa, que estimula a permanência na escola e a conclusão do curso por estudantes de baixa renda, foi criado por iniciativa parlamentar e sancionado pelo presidente.
No meio ambiente, o desmatamento da Amazônia caiu 68% e organizações chave do setor, como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e o Serviço Florestal Brasileiro, estão sendo fortalecidas. A criação dos ministérios de Mulheres, da Igualdade Racial, dos Povos Indígenas e dos Direitos Humanos representam avanços institucionais importantes.
Alcançou-se, pois, um delicado balanço entre estabilidade macroeconômica e justiça social – a pauta que elegeu o presidente Lula. Concluído o ano de “reconstrução”, qual o desafio daqui para frente? Penso que seria atacar frontalmente a desigualdade da distribuição de renda.
Apesar dos avanços das últimas décadas, a desigualdade de renda no Brasil continua persistente e extremamente elevada. De acordo com o World Inequality Database, os 10% mais ricos da população receberam mais de 50% da renda em 2020, enquanto os 50% mais pobres receberam aproximadamente 10%. O índice de Gini (medida de desigualdade da distribuição de renda que varia de 0, igualdade total, a 100, desigualdade total), estimado em 0.529 in 2021, era um dos dez mais altos do mundo e equivalente ao nível alcançado no Brasil em 2011. Desigualdade de renda se traduz em desigualdade de riqueza: 1% da população brasileira possuía quase a metade de toda riqueza em 2019; o índice de Gini para distribuição da riqueza era de 0.89 in 2019, de acordo com dados do Banco Mundial.
Alguma desigualdade pode ser necessária para incentivar esforços diferenciados e premiar empreendedorismo. Mas não há racionalidade econômica para níveis de desigualdade como os do Brasil. Ao contrário, níveis muito altos de desigualdade de renda atrapalham o crescimento econômico quando causam instabilidade política e social, levando ao aumento da insegurança e, com isso, a menos investimento e inovação. Desigualdade muito alta pode também terminar inviabilizando o desenvolvimento de bens públicos ou semipúblicos, como saúde e educação, quando os ricos optam pelo consumo privado desses bens. Esse’ separatismo social’ dificulta o progresso dos mais pobres e reforça o padrão de distribuição de renda mais concentrado. Mais genericamente, desigualdade muito alta pode comprometer a qualidade das instituições e, com isso, a prosperidade econômica, na medida em que instituições sejam uma causa fundamental do crescimento a longo-prazo.
Nesse sentido, o nível de desigualdade existente é, possivelmente, um dos maiores obstáculo ao crescimento acelerado e inclusivo no país. Mas o que se pode fazer a esse respeito?
Primeiro, priorizar políticas que sejam ao mesmo tempo pró-crescimento e reduzam a desigualdade. A literatura identificou, entre outras a politicas de desenvolvimento na primeira infância ou pré-escolar, serviço de saúde universal de qualidade, educação de qualidade, e programas de transferência de renda, condicionados ou não– todas medidas que favorecem a acumulação de capital humano. Outras, como regularização fundiária e acesso a serviços financeiros, inclusive seguro, favorecem a acumulação de ativos físicos. Algumas dessas medidas, como o Bolsa Família, já estão em vigor, outras estão em fase inicial e algumas precisam de mais atenção.
Segundo, avançar na reforma do Estado para aumentar o impacto do gasto público sobre a redução da pobreza e da desigualdade. Um estudo recente conduzido pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento estimou que a intervenção do Estado via impostos e transferências no Brasil, reduzia a desigualdade em até 10 pontos do índice de Gini, comparado com 33 pontos na média dos países da OCDE. Isso indica que há espaço para tornar impostos e gastos mais progressivos no Brasil. Considere por exemplo, que em 2015, gastos tributários com as empresas correspondiam a 4,5% do PIB ou nove vezes o custo do Bolsa Família. Embora essa proporção tenha se alterado recentemente, uma composição de gastos como essa não é a que mais favorece a redução da pobreza ou da desigualdade.
Terceiro, fortalecer as reformas que aumentem a produtividade do trabalho, principalmente nos setores que sejam mais intensivos em mão de obra de menor qualificação – como os serviços da construção civil. Ganhos de produtividade não apenas tornam o crescimento econômico mais duradouro como tornam políticas distributivas, como aumento real do salário mínimo, mais viáveis tanto do ponto de vista fiscal quanto de balanço de pagamentos. Reformas que aumentem a competição, por exemplo, podem induzir à realocação do trabalho em empresas mais produtivas. Investir para tornar as cidades mais eficientes (melhor mobilidade e acesso a economia digital etc) aumentaria a produtividade dos ‘conta-própria’ (autônomos).
Quarto, considerar o impacto das escolhas de política sobre o mercado de trabalho: a maior parte dos ganhos na redução da desigualdade no Brasil entre 2001-2014 veio do aumento do emprego e do salário real dos mais pobres. De fato, grande parte da redução da pobreza e distribuição de renda que ocorreu entre 2004-2014 decorreu de um crescimento mais rápido da renda dos 40% mais pobres (6,8%, comparado a 4,5% por ano em média para a população como um todo). Por exemplo, é muito importante que as políticas industriais não acabem por reduzir a procura de mão-de-obra pouco qualificada.
O terceiro mandato vem conseguindo colocar o país em uma trajetória positiva de crescimento econômico e ganhos sociais. Ações deliberadas e dirigidas para reduzir a desigualdade de renda no país poderiam potencializar esses ganhos ainda mais. Mas, como se vê, envolverão escolhas difíceis.