Os EUA me fizeram vítima da política global anti-trans
Por Erika Hilton*
Sou a primeira mulher negra e trans eleita para o Congresso Nacional e uma das vozes progressistas mais influentes do Brasil, e tive meu gênero deliberadamente alterado de “feminino” para “masculino” em um visto diplomático emitido pela Embaixada dos EUA em Brasília.
O caso, ocorrido em 7 abril de 2024, revela as consequências internacionais da política anti-trans do governo norte-americano e levanta questões urgentes sobre direitos humanos, soberania e diplomacia, que precisamos encarar.
Eu havia sido convidada para debater, no dia 12 de abril, ao lado de outras autoridades brasileiras, em uma missão oficial aprovada pela Presidência da Câmara dos Deputados, o tema “Diversidade e Democracia” na Brazil Conference at Harvard & MIT – a maior conferência sobre o Brasil organizada por estudantes, pesquisadores e professores brasileiros no exterior. Mas, ao solicitar o visto, a Embaixada dos EUA negou publicamente minha identidade de gênero.
Apesar de todos os trâmites legais terem sido seguidos – autorização do Presidente da Câmara dos Deputados para que a viagem tivesse caráter de Missão Oficial e a correspondente solicitação de visto diplomático (classe A), destinado a autoridades governamentais –, a embaixada americana ignorou documentos oficiais que atestam meu gênero feminino, como certidão de nascimento, passaporte e até um visto diplomático anterior emitido pelos EUA em 2023. O campo “sexo” foi alterado para “masculino” sem justificativa ou consulta, em uma decisão unilateral que eu classifico simplesmente como violência transfóbica de Estado.
Eu recebi essa medida, tomada unilateralmente, como o que ela é: uma violência transfóbica grave, além de um forte indicativo de que não haveria condições necessárias de segurança para ingressar no país. Por isso, cancelei minha ida ao evento e trouxe o caso ao público na última semana.
Repito aqui o que disse em um dos meus pronunciamentos sobre o caso à imprensa: “É uma situação de violência, de desrespeito, de abuso, inclusive, do poder, porque viola um documento brasileiro. É uma expressão escancarada, perversa, cruel, do que é a transfobia de Estado praticada pelo governo americano. Quando praticada nos Estados Unidos, ainda pede uma resposta das autoridades e do Poder Judiciário americano. Mas quando invade um outro país, pede também uma resposta diplomática, uma resposta do Itamaraty.”
O caso tornou-se um dos temas mais repercutidos da mídia brasileira e nas redes sociais, gerando amplo debate sobre transfobia institucional e relações internacionais.
A justificativa da embaixada citou a Ordem Executiva 14168, assinada por Donald Trump em janeiro de 2025, que determina que o governo federal americano reconhece apenas “homem” e “mulher” com base no “sexo biológico ao nascer”. A medida, que já havia causado controvérsia ao barrar passaportes com marcador “X” e restringir direitos de pessoas trans nos EUA, atingiu um novo patamar ao ser aplicada a uma autoridade estrangeira em missão oficial.
Pela primeira vez, uma parlamentar eleita teve sua identidade de gênero negada em um documento diplomático, configurando uma interferência direta do governo americano na representação política de outro país. O caso é ainda mais grave porque desconsiderou completamente a legislação brasileira, que permite a retificação de nome e gênero na certidão de nascimento sem exigências médicas ou judiciais desde 2018.
A política dos EUA fere claramente os direitos protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos, especialmente os artigos 3º (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 7.1 (direito à liberdade) e 11.2 (direito à vida privada). Além disso, contraria a Opinião Consultiva 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que determina que os Estados devem garantir a retificação de documentos em conformidade com a identidade de gênero autodeclarada.
Embora os EUA não aceitem a jurisdição vinculante da Corte IDH, eles reconhecem formalmente a competência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Estou desde já reunindo apoios para acionar mecanismos internacionais de proteção e busca o respaldo de parlamentares americanos e organizações de direitos humanos para ampliar a repercussão do caso.
O episódio não é isolado. Desde 2025, relatos de pessoas trans que tiveram vistos ou passaportes americanos recusados ou alterados têm se multiplicado. A diferença é que, desta vez, uma representante eleita com respaldo institucional tornou a violência ainda mais visível, expondo como políticas domésticas podem se transformar em instrumentos de discriminação transfóbica em escala global.
Enquanto o governo de Donald Trump insistir em negar a existência de pessoas trans, casos como o meu continuarão a desafiar a comunidade internacional a agir contra políticas que tolhem a liberdade das pessoas e impõem regras e normas incorretas sobre os corpos e identidades de seus próprios cidadãos e de cidadãos estrangeiros.
*Erika Hilton (PSOL-SP) é a primeira mulher negra e trans eleita para o Congresso Nacional e uma das vozes progressistas mais influentes do Brasil
Este artigo foi escrito para a edição 163 do boletim do WBO, de 25 de abril de 2025. Para ser assinante e receber gratuitamente, toda semana, notícias e análises como esta, basta inserir seu e-mail no campo indicado.