O papel da religião na política de tratamento de drogas

Ana Claudia Cortez é doutoranda em Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP) e Pesquisadora Júnior do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/CEBRAP). Atualmente, é pesquisadora visitante na Brown University, EUA. Este artigo foi escrito por ele para a edição 67 do boletim semanal do WBO, de 19 de maio de 2023. Para assinar o boletim, basta inserir o email no formulário no rodapé do artigo.


“Com 10 anos eu conheci a droga [..] e assim, eu fui parar na Praça da Sé em São Paulo (Brasil) [...] onde recebi o apelido de “Joãozinho Caixão” (nome fictício) porque com 13 anos eu pratiquei meu primeiro homicídio. Daí eu fui preso [...] e na prisão eu aprendi como assaltar e matar [...] depois disso eu pratiquei muitos homicídios. Depois de muitos anos cometendo crimes, fui para uma Comunidade Terapêutica (CT). Eu sempre cumpri ordens na minha vida e lá eu cumpri as ordens, as regras e as rotinas, lá eu descobri quem eu era na minha vida. Hoje faz 38 anos que estou em abstinência [...] Eu acredito que em cima disso tenha Deus na minha vida. A CT me ajudou a me perdoar e buscar Deus.”

Este é um trecho de uma das entrevistas que fiz para a minha pesquisa de doutorado com uma pessoa que foi tratada numa CT no Brasil. As CTs são organizações privadas, em sua maioria religiosas, que oferecem acolhimento e tratamento via internação para pessoas com transtornos decorrentes do uso problemático de substâncias psicoativas (SPAs) lícitas e ilícitas. Essas organizações fornecem serviços baseados na convivência entre pares, abstinência, disciplina e espiritualidade, combinando práticas religiosas com a assistência de profissionais especializados, especialmente psicólogos e assistentes sociais.

Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), há cerca de 2 mil CTs no Brasil que dispõem de cerca de 83.600 vagas. 83% dessas organizações são religiosas (40% pentecostais; 27% católicas; 7% protestantes históricas; 9% de outras religiões) e 90% realizam práticas de orações, cultos e atividades de leitura bíblica como parte do tratamento proposto.

Recentemente, as CTs têm influenciado as políticas de drogas no Brasil, confrontando grupos que são contrários ao tratamento via internação, que defendem estratégias de redução de danos, e que condenam o uso de práticas religiosas como forma de tratamento.  Dentre as estratégias utilizadas pelas CTs para terem suas demandas atendidas pelo Estado estão advocacy, eleição de seus representantes para órgãos legislativos e envolvimento direto com a burocracia estatal, incluindo a inserção de seus representantes em instituições públicas.

Durante inspeção realizada pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura em 28 CTs (Comunidades Terapêuticas), foram constatadas diversas violações de direitos como privação de liberdade, violação de liberdade religiosa e tortura.
— Ana Claudia Cortez

Uma das principais demandas das CTs frente ao Estado brasileiro é o reconhecimento e manutenção de suas práticas religiosas como método de tratamento. Inclusive, este tem sido um dos motivos de maior conflito entre as CTs e o Estado no que concerne à negociação de repasses de recursos públicos.

Organizadas em federações, as CTs têm apresentado suas demandas a instâncias estatais, obtendo importantes conquistas nos últimos anos. Em 2011, durante a gestão de Dilma Roussef (2011-2016), as CTs passaram a receber recursos federais, e em 2015 foi publicado o Marco Regulatório das CTs, onde o Estado brasileiro reconheceu e regulamentou o trabalho dessas organizações - inclusive sua dimensão religiosa. Apesar de avanços importantes no governo Roussef, foi durante os governos de Michel Temer (2016-2018) e especialmente de Jair Bolsonaro (2019-2022) que as CTs passaram a ganhar ainda mais espaço no governo federal. 

Durante a gestão Temer, o Ministério da Saúde revisou as diretrizes sobre internações psiquiátricas hospitalares, dando primazia a abstinência como principal estratégia de cuidado a pessoas que fazem uso abusivo de SPAs no país.

Já logo nos primeiros dias do governo Bolsonaro, as ações relacionadas à prevenção e cuidado ao uso abusivo de SPAs deixaram de ser competência do Ministério da Justiça e passaram para o Ministério da Cidadania, cujo ministro era Osmar Terra, um dos principais defensores do modelo de CTs no Brasil. Ademais, em 2019, foi aprovada a Lei 13.840 (não coincidentemente de autoria de Osmar Terra), que incluiu as CTs no Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas.

De acordo com dados publicados pela Conectas e CEBRAP, o repasse de recursos federais para as CTs aumentou 116,38% entre 2017 e 2020.

Mais recentemente, o governo Lula deu sinais de que dará continuidade ao financiamento de CTs ao criar o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas. Essa decisão tem gerado críticas de movimentos que preconizam um modelo não asilar de cuidado como o Conselho Federal de Psicologia, a Rede Nacional Internúcleos de Luta Antimanicomial (RENILA), entre outros. Muitas dessas críticas partem de denúncias de violações de direitos humanos ocorridas dentro de CTs brasileiras. Por exemplo, em 2017, durante inspeção realizada pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate a Tortura em 28 CTs, foram constatadas diversas violações de direitos como privação de liberdade, violação de liberdade religiosa e tortura.

Assim, o caso das CTs suscita importantes reflexões sobre a relação entre religião e política, especialmente ao que concerne às políticas públicas. Historicamente, igrejas e organizações religiosas tiveram papel crucial na construção e implementação da assistência social no Brasil, especialmente no atendimento à população de baixa renda, o que cria desafios para os limites da relação entre religião e Estado. Regulamentar e fiscalizar essas organizações para que não haja violações de liberdades religiosas e direitos humanos é imperativo e urgente. Espero que o governo Lula avance nessa agenda.


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