Trump, Bolsonaro e a frustrada tentativa de alinhamento automático sob a égide do neoliberalismo autoritário

Rafael R. Ioris é professor de história e política da América Latina na Universidade de Denver e pesquisador associado do WBO. Este artigo foi publicado originalmente no site Interesse Nacional, e, em seguida, reproduzido na edição 91 do boletim semanal do WBO, de 3 de novembro de 2023. Para assinar o boletim, basta inserir seu email no formulário no rodapé do artigo.


As surpreendentes eleições das trágicas figuras de Donald Trump e Jair Bolsonaro às respectivas presidências dos EUA e Brasil deveriam ser lidas como expressões de uma crise mais ampla da democracia liberal derivada de um longo processo de promoção de um ideário atomista de sociedade fundado nas políticas neoliberais dos anos 1990.

Mas embora tenham feito suas campanhas com base em críticas aos limites da representatividade democrática vigente, uma vez no poder, o que tais líderes fizeram foi aprofundar uma visão autoritária, individualista e excludente, dependente cada vez mais da promessa de soluções fáceis e falaciosas a problemas complexos de cada nação vem enfrentando nos últimos anos.

E ainda que partilhem de uma mesma lógica e ideários políticos, e ainda que tenham tentado aproximar seus países, pelo menos no nível discursivo, sob a égide de um alinhamento quase automático, buscado por Bolsonaro, tal projeto não ofereceu nenhum ganho concreto ao Brasil, tendo mesmo aprofundado a natureza assimétrica do relacionamento, além de ter maculado de maneira aguda a imagem internacional do Brasil.

Esses são alguns dos principais argumentos da análise que eu e Roberto Moll Jr., respectivamente professores da Universidade de Denver, nos Estados Unidos, e na Universidade Federal Fluminense, traçamos no artigo Trump e Bolsonaro: Expressões Neo-Fascistas da Frustrada Tentativa de Redefinir as Assimétricas Relações entre o Brasil e os EUA, recém publicado (em inglês) na revista acadêmica Estudos Ibero-Americanos.

Argumentamos também que embora tenham se apresentado como outsiders do sistema político de seus respectivos países, a viabilização de suas narrativas antissistêmicas se fundamentou no medo da mudança e da própria ideia de democracia multicultural, assim como na promessa vaga de reconstrução de um passado mitificado em bases neoconservadoras.

Nesse sentido, quando retomam a agenda econômica neoliberal, agora em termos ainda mais autoritários do que na década de 1990, tais líderes autoritários e demagógicos conseguiram manter níveis de apoio supreendentemente altos em meio a contextos continuamente definidos por condições econômicas desafiadoras e condições de saúde pública crescentemente alarmantes. 

Mas, se Trump e Bolsonaro tiveram muito em comum, os contextos domésticos importaram muito para seus desideratos, assim como para o relacionamento bilateral entres seus respectivos países. Se ambos poderiam ser definidos como representantes claros do neopopulismo de extrema direita, em voga em várias partes do mundo, o papel das forças armadas no governo do Brasil, país que nunca enfrentou seu legado de intervenções golpistas por parte dos seus militares, foi algo muito específico, com desdobramentos ainda em curso para as relações civis-militares.

Da mesma forma, se o populismo de Trump assumiu um caráter mais xenofóbico e racista, o de Bolsonaro teve um viés mais militarista e ideológico, expressando o retorno de articulações de noções remontando ao contexto da Guerra Fria e que pareciam extintas do cenário latino-americano, que tem sido, não obstante, surpreendentemente resgatadas por novos líderes de direita na região.

Por fim, a despeito da partilha de um ideário político autoritário e de uma visão mafiosa (de benefício próprio) de poder, é certo que o quadro de cada país era muito diverso dadas as diferenças óbvias entre os recursos de poder e papel de cada nação no cenário global.

Tais diferenças de bases estrutural não impediram, contudo, que ambos líderes buscassem uma aproximação de viés clientelista, onde as diplomacias de seus respectivos países passaram a buscar um relacionamento de alinhamento estreito não só entre os países, mas entre os dois clãs familiares no poder.

E mesmo que o Brasil tenha apresentado uma linha de diplomacia por mais das vezes definida por autonomia e pela defesa da lógica multilateral, não foi difícil para Bolsonaro buscar realinhar a política externa em bases ideológicas que buscavam, de maneira mal informada e certamente anacrônica, pautar a defesa dos interesses nacionais brasileiros ao longo do cumprimento do papel de membro associado júnior à política externa trumpista. É evidente que parte disso derivou da tentativa de reverter os ganhos em projeção multilateral do país ao longo das últimas décadas.

Ainda assim, fundada numa visão medievalista de mundo do então chanceler Ernesto Araújo, a política externa bolsonarista assumia de maneira explícita o combate a valores universalistas e defendia que uma maior aproximação, em bases dependentistas e associadas, com os EUA seria a melhor forma de articular os interesses do Brasil no mundo de hoje.

Ganhos dos últimos anos, como a obtenção de um peso maior nas negociações comerciais e de governança ambiental, deveriam ser revertidos. A esfera regional de influência deveria ser desmobilizada. E o que deveria ser buscado seria a defesa (a la crusadas medievais) dos valores da cristandade ocidental frente à ameaça (nunca bem definida) do comunismo cultural. Coerente com a mesma defesa feita por regimes similares, como o de Viktor Orban, na Hungria, defender os valores ocidentais não implica, defender uma visão mais inclusiva de democracia, definida cada vez mais segundo parâmetros restritivos (como direitos humanos para humanos direitos, por exemplo).

E assim, como expressões de uma crise mais ampla da democracia liberal, Bolsonaro e Trump nunca buscaram, de fato, oferecer respostas efetivas a demandas por melhores níveis de representatividade política nas complexas sociedades em que vivemos. Ao contrário, serviram mais que tudo como meios de implementação de uma agenda econômica (neoliberal) e política (autoritária) excludente.

Interessantemente, a despeito de suas afinidades ideológicas e morais, tais líderes não conseguiram implementar formas mais duradouras de alinhamento diplomático estreito e subordinado – a despeito do tanto que Bolsonaro, especialmente, tentou.

Para além das razões estruturais que não permitiram tais desdobramentos (como as mudanças no cenário econômico global levando a uma maior dependência da economia brasileira do mercado chinês), as conquistas das últimas décadas da diplomacia brasileira no sentido de projetar o país no cenário internacional de maneira mais estrutural e duradoura certamente serviram como impedimentos em tal aproximação subordinada. É certo, contudo, que um possível retorno de Donald Trump à presidência dos EUA e a crescente rivalidade EUA-China apresentarão dificuldades crescentes para a condução da política externa mesmo para um Brasil não mais sob a vergonhosa presidência de Bolsonaro.


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