O Brasil na Organização dos Estados Americanos: em busca da convergência possível
Benoni Belli é diplomata de carreira e representante Permanente do Brasil junto à OEA. Este artigo foi escrito por ele para a edição 92 do boletim semanal do WBO, de 10 de novembro de 2023. Para assinar o boletim, basta inserir seu email no formulário no rodapé do artigo.
A OEA (Organização dos Estados Americanos) é a organização regional mais antiga em atividade no mundo. A sua Carta foi adotada em 1948, mas a OEA é herdeira dos processos de conferências pan-americanas que se iniciaram no final do século XIX e levaram à criação da União Panamericana, em 1910. Ao longo de sua história, o sistema interamericano foi responsável por consolidar princípios como solução pacífica de controvérsias, não-interferência em assuntos internos dos Estados e respeito à integridade territorial dos Estados. A esses princípios se agregaram, com a fundação da OEA e nos anos seguintes, a defesa da democracia, a proteção dos direitos humanos e a busca do desenvolvimento e da segurança. O Brasil foi fundador da OEA e participou ativamente desse processo desde o início, ajudando a moldar o sistema.
Apesar desses princípios importantes, sempre existiu uma assimetria de poder evidente entre os Estados Unidos e os demais países da região. Diferentemente do Conselho de Segurança da ONU, contudo, cujos cinco membros permanentes possuem privilégios, na OEA prevalece a regra da igualdade jurídica de todos, bem como o princípio de um país, um voto. Embora essa regra não apague como num passe de prestidigitador a realidade das diferenças de tamanho de economia, populações, renda per capita, poder militar e níveis de bem-estar em toda a região, é evidente que o ambiente multilateral impõe a todos, sem exceção, certos constrangimentos derivados das regras comuns.
Em alguns momentos, devido às circunstâncias internacionais, os Estados Unidos tiveram uma influência determinante nos rumos da Organização, sobretudo no imediato pós-Segunda Guerra Mundial. O fim da Guerra Fria, a pacificação da América Central e as transições democráticas em diversos países da região nos anos 1980 e 1990 mudaram os termos da equação. Antes refém da bipolaridade Leste-Oeste, a OEA passou a refletir um jogo mais complexo e a independência crescente dos países da região, que, liberados das amarras do alinhamento automático, passaram a perseguir seus próprios interesses, com momentos de maior ou menor convergência ao longo das últimas décadas.
É a partir desse período que a OEA desenvolve novas capacidades. O otimismo e a sensação de convergência logo após o fim da Guerra Fria terão contribuído para essa evolução, que coincidiu, em grande medida, com a presença e liderança do Embaixador João Clemente Baena Soares à frente da Secretaria Geral da Organização (1984-1994). Nesse período, a OEA se tornou a Organização de todos os Estados Americanos, com o ingresso de Canadá, Belize, Guiana, e St Kitts e Nevis. Também se lançaram as bases para Missões de Observação Eleitoral mais robustas e novas regras de defesa da democracia que desembocariam da Carta Democrática Interamericana, de 2001. A atmosfera que se vivia no período permitiu que Baena Soares desempenhasse papel ativo de mediação em conflitos na América Central e no Haiti, com uso intensivo da diplomacia.
Muitos observadores da OEA contrastam aquele período de ouro com momento mais recente, que teria como traço distintivo o aumento da polarização política e o afastamento de países como Venezuela e Nicarágua da Organização. Novas divisões e realidades surgiram num contexto caracterizado pela perda relativa de civilidade nos embates políticos internos, o incremento do extremismo político e do negacionismo, combinados com estratégias de guerrilha digital e desinformação na nossa era das mídias sociais. Tudo isso teve efeito negativo também na OEA. O maniqueísmo político passou a ditar tanto decisões dos órgãos políticos quanto as postagens nas redes sociais, contaminando o ar que se respira nos corredores da Organização. Apesar disso, a OEA continuou prestando serviços importantes como plataforma para enfrentar desafios comuns não apenas em democracia, cooperação eleitoral e direitos humanos, mas também em áreas como mediação e prevenção de conflitos, combate ao crime organizado e ao tráfico de drogas, acesso à saúde, cooperação técnica, e desenvolvimento sustentável e mudança do clima.
Esse papel positivo da Organização é muitas vezes ofuscado pelos temas de maior octanagem política, por assim dizer, que acabam projetando uma imagem de fragmentação. A chave para que a imagem da OEA seja restaurada e sua relevância, fortalecida, reside no resgate do bom e velho diálogo diplomático, inspirado no exemplo citado de Baena Soares. A diferença é que o ambiente político na região e no mundo está mais carregado, o que exigirá doses adicionais de prudência e criatividade. O Brasil está propondo, nesse sentido, uma discussão sobre práticas negociadoras e regras de procedimento com o intuito justamente de ampliar os espaços de negociação, de modo a permitir que qualquer proposta dos órgãos políticos seja preparada com transparência e maior engajamento de todos, por oposição a textos elaborados na surdina por pequenos grupos, prática que tende a minar a confiança e gerar mais polarização e disfuncionalidade.
Para além de tornar as regras de procedimento mais participativas, garantindo decisões legítimas e consensos reais sempre que possível, será fundamental empregar a temperança nos processos e nas formas de buscar a implementação de compromissos em direitos humanos e democracia. Os altos padrões e as obrigações nesses campos são inegociáveis, mas em tempos de polarização é preciso cuidado redobrado para que a defesa desses compromissos não seja encarada como enviesada, politicamente motivada ou tentativa de favorecer lados distintos em disputas internas dos países. Daí a importância de evitar o recurso automático à punição, que fecha espaço para diálogo, ocasionando isolamentos contraproducentes. Para colocar numa imagem ilustrativa e sintética: é preciso substituir as cobranças feitas no “X” (ex-Twitter) pela diplomacia e o diálogo para assim preservar a capacidade da OEA e seus órgãos políticos de falar com credibilidade em nome dos altos padrões comuns. Do contrário, corre-se o risco de gradual esvaziamento da Organização, com a consequente desidratação de seu peso e relevância.