Uma nova etapa nas ações afirmativas na Educação

Este artigo foi escrito por Rosana Heringer, professora da Faculdade de Educação da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), coordenadora do LEPES (Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Superior) e pesquisadora associada do WBO (Washington Brazil Office) para a edição 95 do boletim semanal do WBO, de 8 de dezembro de 2023. Para ser um assinante do boletim, basta inserir seu e-mail no formulário que está no rodapé do artigo.


Ao sancionar a nova lei de cotas, em cerimônia no Palácio do Planalto, no dia 13 de novembro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que toda política pública, por melhor que seja, sempre está sujeita a aperfeiçoamentos e ajustes. Este foi o espírito da adoção da Lei 14.723/2023, a nova Lei de Cotas, que modifica e aperfeiçoa as políticas de ação afirmativa para ingresso de estudantes pretos, pardos, indígenas, quilombolas, de escola pública, de menor renda e com deficiência nas universidades e demais instituições federais de educação superior e de ensino técnico de nível médio. Vamos percorrer aqui brevemente as principais alterações feitas na Lei 12.711, a conhecida Lei de Cotas, de 2012.

Podemos sintetizar as mudanças feitas na lei anterior em dez pontos, apresentados aqui em quatro grandes grupos, a saber: a) mudanças em relação ao público do programa; b) mudanças em relação aos mecanismos de implementação; c) mudanças em relação ao monitoramento das ações afirmativas; d) inovações.

No que se refere ao público a que se destina o programa de ações afirmativas, a principal mudança diz respeito à inclusão de estudantes quilombolas entre os grupos beneficiados, ao lado dos pretos, pardos e indígenas, estudante de menor renda, de escola pública e com deficiência. Tal medida atende a uma demanda de reconhecimento da especificidade étnica e cultural deste grupo, ainda pouco contemplado em políticas direcionadas. Esta medida ganha relevo neste momento em que pela primeira vez o país coleta dados sobre a população quilombola em um censo demográfico, possibilitando um melhor conhecimento deste grupo.

Ainda no que se refere ao público destinatário do programa de ação afirmativa, a nova lei redefiniu o recorte de renda, reduzindo de 1,5 para 1 salário mínimo per capita o limite máximo de renda neste tipo de reserva de vagas. Ao fazê-lo, os legisladores foram atentos ao fato já identificado em vários estudos que apontam a necessidade de maior focalização nos estudantes mais pobres, para que a política de fato contribua para reduzir desigualdades socioeconômicas de acesso.

Em relação aos mecanismos de implementação, o mais notável avanço da nova lei em relação à anterior é a disponibilização das vagas de ampla concorrência para todos os estudantes que concorrem no SISU (Sistema de Seleção Unificado). Esta medida faz com que os candidatos beneficiados por ações afirmativas concorram às vagas reservadas apenas se não forem aprovados na seleção geral. Como vários pesquisadores e ativistas desse campo têm enfatizado, esta medida permite que as cotas sejam “um piso e não um teto”, alargando as possibilidades de ingresso dos estudantes beneficiados pelas ações afirmativas. Este grupo também passa a ter prioridade na alocação em vagas não preenchidas por outras modalidades. Um último ponto em relação aos mecanismos, não menos importante, refere-se à necessidade de atualização dos dados sobre população a partir do terceiro ano após o último censo demográfico, abrindo a possibilidade para a utilização de outras bases de dados oficiais para esta atualização.

A lei recém promulgada também avança na definição das formas de seu monitoramento e avaliação, um ponto amplamente apontado como ausente em relação à implementação da Lei 12.711. Por razões várias, o Executivo Federal não desenvolveu desde 2013 as ferramentas necessárias para a realização deste monitoramento, o que foi agravado no período 2019-2022, levando a um efetivo “apagão” de possíveis instâncias de acompanhamento justamente no momento em que a lei completava dez anos de vigência. Como resposta a esta situação, a Lei 14.723 prevê o acompanhamento e avaliação pelo Ministério da Educação, juntamente com outras instâncias do Governo Federal, com previsão de avaliação a cada dez anos e divulgação de relatórios anuais de acompanhamento.

Por fim, trazemos o item que chamamos de inovação, que diz respeito a dois aspectos específicos que vêm sendo debatidos por especialistas e também nas instituições federais de educação superior. O primeiro se refere à previsão de adoção de políticas de ação afirmativa nos programas de pós-graduação stricto sensu. Esta previsão formaliza a recomendação que o MEC (Ministério da Educação e Cultura) havia feito em 2016, orientando a adoção destes programas e integrando-os com o conjunto das ações afirmativas no ensino superior.

A outra medida prevê a prioridade para o recebimento de assistência estudantil por estudantes cotistas que se encontrem em situação de vulnerabilidade no momento do ingresso no Ensino Superior. Embora saibamos que esta e outras medidas previstas na lei são medidas passíveis de regulamentação, destacamos a importância desta orientação que visa possibilitar os grupos beneficiados no ingresso no ensino superior o necessário apoio à permanência na universidade. É amplamente reconhecida em vários estudos a importância de que as condições de permanência sejam percebidas como parte das ações afirmativas, garantindo atenção especial aos estudantes destes grupos específicos.

Em síntese podemos dizer que a lei 14.723, ao promover alterações na lei 12.711, aperfeiçoa mecanismos e também inova em aspectos específicos, incluindo novos grupos beneficiados e novos mecanismos de monitoramento.

Por outro lado, estudos sobre o tema e também a prática da gestão universitária demonstram que alguns aspectos referentes à plena implementação das ações afirmativas nas instituições federais de educação superior seguem como desafio e deverão ser objeto de atenção no cotidiano das instituições. Aqui sinalizamos por exemplo a questão das comissões de heteroidentificação, tema sobre o qual a nova legislação não se pronuncia, mantendo-se, portanto, como algo sob responsabilidade de cada instituição.

Também chamamos a atenção para aspectos ligados à formação, na perspectiva antirracista, do corpo social das universidades e demais instituições federais de ensino e à necessidade de fortalecimento dos órgãos internos de gestão responsáveis pelas ações afirmativas em cada instituição, que precisam ser mais bem equipados em termos de recursos humanos, orçamentários e legitimidade no âmbito da gestão universitária.

A lei 14.723 inaugura um novo momento na implementação das ações afirmativas no Brasil, e representa uma etapa importante neste longo caminho de reparação histórica e busca de igualdade racial no país. Com as mudanças aprovadas, cresce também a responsabilidade de todos os envolvidos na implementação e monitoramento destes programas, bem como a necessidade de nossas instituições construírem ambientes acadêmicos antirracistas e comprometidos com a diversidade brasileira em suas várias dimensões.


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