Os documentos secretos dos EUA sobre o golpe de 64 no Brasil
James N. Green é historiador, professor de história e cultura brasileira na Universidade Brown, autor de 11 livros sobre o Brasil e presidente do Conselho Diretivo do WBO (Washington Brazil Office). Este artigo foi publicado originalmente na revista brasileira Carta Capital de 8 de dezembro de 2023 e, em seguida, reproduzido na edição 97 do boletim semanal do WBO. Para assinar o boletim, insira seu e-mail no formulário no rodapé do artigo.
O governo americano ainda guarda cerca de mil arquivos secretos sobre o golpe de 1964 e a ditadura que durou 21 anos no Brasil. Nós queremos que o presidente dos EUA, Joe Biden, retire o sigilo desses arquivos para que possamos ter uma melhor compreensão sobre esse período histórico tão importante para os dois países.
Por meio do projeto Abrindo Arquivos, nós já conseguimos acesso a 60 mil papéis produzidos por diferentes órgãos do governo americano. Esses papéis foram fundamentais para que estudiosos do período pudessem montar grande parte do quebra-cabeça que nós conhecemos hoje. Mas faltam peças. Os cerca de mil arquivos aos quais pedimos acesso agora podem ajudar a compreender melhor, por exemplo, a colaboração americana e o financiamento de setores da polícia brasileira envolvidos na perseguição, tortura e morte de dissidentes políticos.
O momento é oportuno. Em 2024, vamos relembrar os 60 anos do golpe de Estado de 1964 e os 200 anos do reconhecimento da independência do Brasil pelos EUA. Além disso, temos um fato mais recente: o apoio importante que o governo Biden deu à democracia no Brasil, ao somar-se, em 2022, ao respaldo internacional ao sistema eleitoral brasileiro quando ele era duramente atacado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
Nós entendemos que a abertura desses arquivos seria um gesto de convergência entre os dois governos na direção da transparência e do apreço mútuo pela democracia. Os EUA não tiveram um papel positivo no golpe de 1964, é verdade. Mas a história não é estática. Se bem é verdade que um mal do passado não pode ser revertido, tampouco é verdade que nós tenhamos de permanecer paralisados por esse mal. Ao contrário, devemos empreender todos os esforços para, hoje, fazer pela democracia o que não foi feito antes. E a abertura desses arquivos é um gesto importante nesse sentido.
No dia 5 de julho, nós enviamos uma carta a Biden pedindo a desclassificação desses documentos. O pedido foi feito com base no “compromisso com a transparência e a defesa da democracia” que ficou tão evidente nas declarações de respaldo à democracia brasileira na última eleição, vencida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O documento enviado a Biden no meio ano foi assinado por um grupo de 16 organizações da sociedade civil brasileira e oito personalidades – todo o grupo bastante envolvido nas pesquisas sobre esse período histórico e na defesa da democracia.
O texto, dirigido a Biden, diz: “ao desclassificar documentos relacionados à ditadura brasileira, o senhor demonstraria seu compromisso inabalável com a verdade, a responsabilidade e o Estado de Direito. Além disso, isso enviaria um sinal poderoso ao povo brasileiro de que os Estados Unidos estão do lado dele [do povo brasileiro] em sua busca por justiça e defesa da democracia. A desclassificação também forneceria informações valiosas sobre as violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura brasileira e esclareceria o grau de envolvimento ou conhecimento dos Estados Unidos sobre esses eventos. Esse ato de transparência fortaleceria também as bases de nossa relação bilateral, fomentando confiança e colaboração em questões importantes como direitos humanos, democracia e estabilidade regional”.
A decisão é de Biden, mas o Congresso desempenha um papel muito importante na política externa nos EUA. Por isso, no dia 5 de dezembro, nós redobramos os esforços em Washington, realizando um briefing com deputados e senadores americanos interessados na questão. Com apoio da deputada democrata Nydia Velázquez, eu e duas colegas brasileiras – a cientista política Maria Hermínia Tavares, do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), e Gabrielle Abreu, do Instituto Vladimir Herzog – fizemos uma exposição sobre a importância de conhecermos esses documentos secretos.
Recentemente, o Chile fez pedido semelhante ao governo americano, por ocasião dos 50 anos do golpe de Estado que derrubou o presidente socialista Salvador Allende e deu início aos 17 anos de ditadura comandada pelo general Augusto Pinochet. Após um pedido do Chile, o Departamento de Estado americano publicou o briefing diário da Presidência dos EUA dos dias 8 e 11 de setembro de 1973.
É sabido que os EUA desempenharam papel preponderante nos golpes e nas ditaduras cívico-militares que varreram a América Latina e o Caribe nos anos da Guerra Fria. Esse é um passado nefasto e bem documentado, sobre o qual já sabemos muito, mas não o bastante.
Com o passar dos anos, fomos entendendo melhor as teias de cooperação dos governos militares, não apenas com os EUA, mas também entre si. O Brasil, por exemplo, onde o golpe foi dado em 1964, desempenhou papel preponderante no Chile, onde o golpe só ocorreria nove anos depois. Sabe-se hoje das linhas de crédito que foram abertas pelo governo brasileiro para a Junta Militar chilena, além da exportação de instrumentos de tortura e do conhecimento usado para submeter os prisioneiros do Estádio Nacional, em Santiago, aos suplícios que todos sabemos.
Avançar no conhecimento sobre esses fatos é uma maneira eficaz de compreender cada vez melhor a história e de construir um futuro no qual os países das Américas estejam ligados por ideais comuns de promoção, defesa e preservação da democracia e dos direitos humanos, em contraste com os anos sombrios das ditaduras, que não serão nunca esquecidas, mas poderão, com transparência e cooperação, ser melhor estudadas e debatidas pelas novas gerações.