8 de março de 2023: ‘No Callem’
Vanessa Dolce de Faria é diplomata brasileira, atualmente Cônsul Geral Adjunta do Brasil em Barcelona. As opiniões aqui expressas são pessoais e não representam o Ministério das Relações Exteriores. Este texto foi escrito por ela originalmente para a edição 56 do Boletim Informativo Semanal do WBO do dia 03 de março 2023. Para acessar e assinar o boletim semanal do WBO em inglês basta inserir seu e-mail no formulário no rodapé desta página.
A proximidade do dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, convida anualmente à reflexão sobre as enormes desigualdades que persistem entre homens e mulheres. Se é verdade que as mulheres sofrem diversos graus de discriminação e violência sexista, que variam de acordo com a renda, a cor da pele ou o local de origem de cada uma de nós, também é verdade que somos unidas por termos nascido com um determinado sexo, o “segundo sexo” mencionado por Simone Beauvoir – que também ensinou que não há nada que nos defina essencialmente como mulheres. Parece haver, por outro lado, uma certa universalidade resultante da desigualdade comum que afeta a todas nós, e é por isso que uma data internacional, comemorada em todo o mundo, faz tanto sentido. Há uma citação famosa de Virginia Woolf que ecoa essa condição: “Como mulher não tenho pátria, como mulher não quero pátria, como mulher minha pátria é o mundo inteiro.”
Essa frase me veio à mente ao acompanhar a repercussão da recente prisão na Espanha de um conhecido jogador de futebol brasileiro acusado de estupro, fato que motivou a divulgação, no Brasil, de medida administrativa da Prefeitura de Barcelona, adotada voluntariamente para espaços de lazer e para a vida noturna no combate ao assédio e à agressão sexual, e que foi aplicada no caso em questão. O protocolo “No Callem” (que significa tanto “Não nos calamos” como “Não nos calemos” em catalão) tornou-se referência e inspiração para diversos projetos de lei, em diversos órgãos legislativos brasileiros, e objeto de grande interesse da imprensa e da opinião pública. Em Barcelona, a ideia partiu de uma organização feminista que sugeriu a adoção de locais de referência aos quais as vítimas de assédio pudessem recorrer durante as festas de rua que costumam acontecer em diferentes bairros da cidade. A ideia ganhou um prêmio da cidade de Barcelona em 2016. Dado o sucesso da iniciativa no espaço público, a cidade decidiu transplantar o modelo para estabelecimentos noturnos privados, e assim nasceu o protocolo em 2018. A história por detrás do “No Callem” é interessante porque mostra uma conquista que nasceu da mobilização social, prosperou com o apoio do governo e ganhou visibilidade com a participação da iniciativa privada.
Neste mundo onde exemplos e lutas circulam, inspiram e nos fazem pensar sobre nossos próprios desafios, é triste chegarmos a mais um 8 de março sem termos avançado em muitas questões relacionadas à mulher no Brasil. Nosso “No Callem” ainda é uma iniciativa apenas de grupos de mulheres, principalmente “Não é não!” durante o Carnaval, e depende de seu sucesso por meio de iniciativas legislativas.
Pensando no atraso do Brasil nesses assuntos, é impossível não lembrar da questão do aborto. Na União Europeia, o aborto é legal em 26 dos 27 países-membros (com exceção de Malta). Na Espanha, é legal desde 2010 e, em fevereiro passado, foi definitivamente considerado constitucional pelo Supremo Tribunal do país. Treze anos depois da aprovação da lei, há um sólido consenso em torno de sua adequação, hoje reconhecida, inclusive, por lideranças políticas que à época a questionaram na Justiça. Recentemente foi aprovada uma nova lei espanhola de saúde sexual e reprodutiva que amplia os direitos relacionados ao aborto e traz inovações como a possibilidade de licença médica por menstruação dolorosa.
No Brasil, fala-se sobre as razões de saúde pública que devem levar à legalização do aborto. Afinal, são milhares de mulheres que morrem todos os anos por não conseguirem fazer um aborto seguro, e já sabemos que o aborto não deixa de existir por ser ilegal. Porém, o argumento da justiça social deveria pesar mais, pois o aborto é um verdadeiro termômetro da nossa desigualdade. Mulheres brasileiras de alta renda, em sua maioria brancas, praticam abortos seguros. Quem morre são as pobres e as negras, justamente as que constituem a maioria da população brasileira. Mesmo assim, o tema continua sendo tabu. Líderes políticos e formadores de opinião evitam covardemente qualquer debate sobre o assunto. “Não Callem”, não ficar calado diante desse cenário, deveria ser um imperativo ético para todos nós.
Olhando novamente para exemplos que podem nos inspirar, o aborto na França foi legalizado há quase 50 anos. A mulher que travou essa batalha agora descansa no Panteão, onde a França homenageia seus heróis. A heroína era Simone Veil, então ministra da Saúde, uma sobrevivente do Holocausto. De centro-direita, ela focou o debate não apenas na saúde pública e na justiça social, mas também na liberdade, um dos valores fundadores da República Francesa. As francesas precisavam ser livres para decidir.
Ao nosso redor, as argentinas, colombianas e uruguaias felizmente já têm direito ao aborto, mas as brasileiras ainda não. Também não temos muitas outras coisas importantes, é sempre necessário repetir. A principal delas, talvez condição fundamental para o avanço em outras questões, é a paridade nos espaços de poder. A representatividade é uma questão não apenas de justiça demográfica, mas de visibilidade. Contribui para naturalizar a presença feminina em espaços ainda dominados por homens. As mulheres são agora apenas 18% no Congresso Nacional. No momento, não há nenhuma mulher nos órgãos dirigentes do Senado, e apenas uma entre os 11 líderes da Câmara dos Deputados. Somos um país predominantemente feminino, mas entre os diplomatas que nos representam em todo o mundo, as mulheres representam apenas 23%. Pela primeira vez, mais mulheres lideram ministérios no Brasil, mas ainda somos 11 em 37. Se há motivos para comemorar este 8 de março, há muitos outros que nos obrigam a continuarmos mobilizadas.