Cerrado: O Bioma Invisível, Coração das Águas e Guardião da Vida
Ingrid Silveira, secretária executiva da Rede Cerrado. Este artigo foi escrito para a edição 138 do boletim semanal do WBO, de 11 de outubro de 2024. Para ser um assinante do boletim, basta inserir seu e-mail no formulário.
O Cerrado surgiu há 80 milhões de anos, sendo um dos biomas mais antigos do Planeta. Em apenas 50 anos, a ação humana predatória destruiu 50% da vegetação nativa desta que é a segunda maior reserva da biodiversidade do Brasil e a savana mais biodiversa do Globo – um bioma que tem cerca de 5% de todas as espécies do mundo.
Quanto estrago em tão pouco tempo! Os impactos nocivos da ação humana foram agravados neste ano de 2024 pelos mais de 60 mil focos de incêndio registrados, muitos deles incêndios criminosos, que durante dias cobriram de fumaça o céu de diversas cidades brasileiras. A maior parte dessas queimadas ocorreu na região conhecida como Matopiba (siglas iniciais dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), uma área crítica de expansão agrícola. As queimadas no Cerrado contribuem para os conflitos de terra e para a grilagem, principalmente por facilitar o desmatamento ilegal e a expansão do agronegócio. O uso do fogo destrói rapidamente grandes áreas de vegetação nativa, permitindo a conversão dessas terras em pastagens e monoculturas, como soja e gado. Essa prática ilegal favorece a apropriação indevida de terras, muitas vezes por meio da invasão de territórios indígenas, de comunidades tradicionais e de áreas protegidas, o que intensifica os conflitos fundiários. Além disso, as queimadas forçam a saída de comunidades locais, aumentando a vulnerabilidade dessas áreas frente à grilagem.
Essas queimadas não só emitem grandes quantidades de CO₂, contribuindo para o aquecimento global, mas também afetam diretamente a biodiversidade, causando perda de habitat e morte de animais, além de prejudicar a qualidade do solo e o ciclo das chuvas. E aqui temos um ponto de grande atenção: os recursos hídricos.
O Cerrado ocupa uma posição estratégica no centro do continente, no Planalto Central Brasileiro, vertendo água para todo o Brasil e para parte da América do Sul, abastecendo 8 das 12 principais bacias hidrográficas brasileiras. Por abastecer diretamente a Amazônia, o Pantanal, a Mata Atlântica e a Caatinga, garantindo a sobrevivência de milhões de pessoas, flora e fauna, esse bioma é conhecido como “coração das águas".
Historicamente negligenciado e mal compreendido, o Cerrado é tratado muitas vezes como um “vazio demográfico” pronto para exploração desenfreada. Para que ele seja verdadeiramente compreendido, é essencial reconhecer suas características únicas. Em uma bela dinâmica, os “rios voadores” trazem umidade da Amazônia para o Cerrado, formando um ciclo hídrico de interdependência. Isso ocorre pelo fato de que o Cerrado tem uma vegetação diferenciada: ele é uma “floresta invertida”, onde a maior parte da biomassa está nas raízes profundas, que alcançam até 15 metros de profundidade. Essas raízes têm uma função essencial: transportar e armazenar água, criando verdadeiros rios subterrâneos que alimentam aquíferos e rios de superfície. Sem a vegetação do Cerrado, esses corpos d'água se esgotariam, levando ao colapso dos ecossistemas em cadeia e impactando não apenas o Brasil, mas a América do Sul.
Além de sua função ecológica fundamental, o Cerrado é a casa de uma diversidade impressionante de povos, culturas e modos de vida. Estes povos, que incluem comunidades indígenas, comunidades quilombolas, geraizeiros, quebradeiras de coco babaçu, apanhadores de sempre-vivas, entre outros importantes segmentos tradicionais, possuem uma relação íntima e sagrada com a terra. Para essas comunidades, o Cerrado não é apenas um recurso natural a ser explorado, mas uma entidade viva, uma extensão de suas próprias existências. Eles veem a terra como uma mãe que alimenta e cuida e, em troca, praticam formas de manejo sustentáveis que preservam e enriquecem o bioma. A diversidade cultural e a sabedoria ancestral desses povos são inestimáveis. Eles têm resistido por séculos, mantendo práticas agrícolas e extrativistas que promovem a conservação do Cerrado, ao mesmo tempo em que garantem sua própria subsistência. Essa relação harmoniosa com o ambiente é um exemplo vivo de que a convivência entre desenvolvimento humano e conservação ambiental é não apenas possível, mas necessária.
A proteção do Cerrado está intimamente ligada à proteção de seus povos, cuja sobrevivência é fundamental para a preservação do bioma. O caminho para reverter sua degradação passa pelo reconhecimento dos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais, que atuam como seus verdadeiros guardiões. É essencial que a comunidade internacional, incluindo organizações socioambientais e a ONU, apoie políticas de desenvolvimento sustentável que respeitem e valorizem esses modos de vida. Além disso, a meta de desmatamento zero – tanto do desmatamento legal quanto ilegal – deve ser inegociável, enquanto a promoção de práticas agroecológicas e a restauração de áreas degradadas são cruciais para garantir que o Cerrado continue a desempenhar seu papel vital como regulador climático e fornecedor de água.
Diante desse cenário, é imperativo que o mundo desperte para a realidade do Cerrado. Não se trata apenas de um bioma brasileiro, mas de um patrimônio da humanidade, cuja preservação é essencial para a estabilidade climática global e para a segurança hídrica do continente sul-americano. O Cerrado é o coração das águas, e sem água não há vida.