Por que a extrema direita ganha apoio popular e expressão eleitoral no Brasil

Flavia Pellegrino é coordenadora executiva do Pacto Pela Democracia, uma coalizão de mais de 200 organizações da sociedade civil que, desde 2018, coordena os esforços de atores sociais em todo o espectro ideológico para aumentar a capacidade da sociedade civil de defender e revigorar a democracia no Brasil. Este artigo foi escrito para a edição 112 do boletim semanal do WBO, publicado em 12 de abril de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo indicado.



Os resultados do primeiro turno das eleições municipais brasileiras de 2024, realizado em 6 de outubro, apontam para um cenário previsto e temido desde que forças políticas antidemocráticas se intensificaram no país ao longo da última década. O pleito revelou uma importante tração político-eleitoral da extrema direita e do campo que a orbita, assim como foi mais uma vez palco de métodos característicos desse locus do espectro político: campanhas sistemáticas de desinformação, violência política e hostilidade acerca do sistema de votação brasileiro.

A extrema-direita continua a ser, decerto, uma força política crescente e mobilizadora no Brasil. Sua ascensão figura entre os elementos que moldam os inúmeros desafios democráticos do país hoje, embora não seja o único. As raízes das fissuras das democracias são mais profundas, nacional e internacionalmente. 

Aqui no Brasil, o atual processo de erosão democrática está em curso há pelo menos uma década, e, globalmente, pode-se remontar a ainda mais longe, 2007, quando indicadores mundiais sobre a qualidade das democracias começaram a apontar o fenômeno de recessão dos regimes democráticos em todo o planeta.

Em seu último relatório, o Instituto V-DEM (Varieties of Democracies) revelou que o nível de democracia desfrutado ao redor do mundo em 2023 voltou a patamares de 1985. Segundo o índice, 71% da população mundial – 5,7 bilhões de pessoas – vivem em autocracias, o que significa um aumento de 48% em relação a dez anos atrás. O relatório também mostrou que 42 países estão atualmente em episódios contínuos de autocratização; há 20 anos, eram 11. Ademais, apenas 18 países estão se democratizando, em comparação com 35 países há 20 anos.

No caso brasileiro, o impulsionamento de tal fenômeno reside fundamentalmente na emergência de um processo de completo rechaço à política nacional, a seus atores e a suas instituições, alicerçado em um amálgama de indignações generalizadas que acabou por culminar numa espécie de contestação da própria democracia brasileira.

O retumbante sentimento antissistema que passou a vigorar no Brasil a partir de 2013 é justamente o que dá forma e conteúdo ao ciclo político que vivemos hoje e é o fenômeno que alimenta primordialmente o processo de erosão democrática que marcou o país ao longo da última década. Tamanho ímpeto antissistema foi, portanto, o fio condutor que nos levou a eleger, em 2018, o candidato da extrema direita que melhor catalisou e mobilizou tamanha insatisfação e cujo projeto político visava justamente implodir o sistema em vigor. Jair Bolsonaro, portanto, não foi causa, mas sintoma deste processo de recessão e fragilidade democráticas no Brasil.

“Jair Bolsonaro não foi causa, mas sintoma deste processo de recessão e fragilidade democráticas no Brasil"

Flávia Pellegrino, coordenadora executiva do Pacto Pela Democracia

As insatisfações sociais e políticas que originam tamanha rejeição são absolutamente legítimas em um país marcado por um dos maiores níveis de desigualdade do planeta, onde direitos básicos nunca foram acessíveis e eficazes para uma parcela significativa da população, em que múltiplas formas de violência imperam ao redor de todo o território nacional, e cujo sistema político é flagrantemente falho em termos de representação. Na ausência de formulações mais refinadas, o descontentamento relativo às condições e à qualidade de vida tende comumente a ser atribuído ao próprio regime democrático, fazendo com que o desejo urgente e legítimo por mudanças recaia direta e perigosamente sobre a tal democracia que deveria estar proporcionando benesses que jamais se concretizaram. 

Embora o diagnóstico sobre a insuficiência da entrega do regime democrático brasileiro seja real, os paradoxos dos caminhos para enfrentá-lo são diversos; sendo o primeiro e mais o fato de que são as democracias os tipos de sistema que conceitual, empírica e historicamente permitem as construções sociais e políticas voltadas ao avanço e à garantia dos direitos e das liberdades tão almejados. A solução residiria no aprimoramento e aprofundamento da democracia, não em sua destruição.

É também notória uma certa inversão de papeis entre atores dentro do espectro político diante desse cenário. Ao longo da história, foram os setores ligados à luta democrática – e especialmente do campo progressista ­– que sempre estiveram identificados com os movimentos de transformação, mudanças ou até mesmo revoluções das realidades políticas do país. Hoje, todavia, em um contexto em que as democracias estão sob ameaça e em evidente recessão, seus defensores acabam por assumir a pecha de “conservadores”, aqueles que desejam preservar o sistema, ainda que clamem e trabalhem por transformações estruturais. Afinal, preservar, defender e aprofundar a estrutura democrática de um país não é, de forma alguma, defender ou conversar o status quo.

Em meio ao imbróglio político-ideológico atual, o caso brasileiro traz ainda um outro importante elemento: a avaliação de que a extrema-direita no país conseguiu ganhar tamanho terreno em razão da extinção de uma direita verdadeiramente democrática. Lideranças e partidos políticos marcados pelo fisiologismo e pelo oportunismo, movidos majoritariamente por interesses próprios, legitimam e fortalecem a existência, as práticas, os valores e as ideias da extrema-direita. Isso ocorre tanto nas construções e disputas políticas mais ordinárias, quanto nas articulações e negociações que se dão dentro das instituições democráticas, hoje, especialmente no Legislativo nacional. 

Autocratas não destroem uma democracia sozinhos. Eles invariavelmente precisam de aliados – em especial de líderes políticos tradicionais e dotados de envergadura política – que os apoiem, legitimem e protejam. Razão pela qual para que a extrema direita não siga prosperando e levando a cabo seu projeto antidemocrático no Brasil, um dos mais importantes passos passa a ser a reconstituição de um campo de direita inequívoca e essencialmente comprometido com ideais, valores e práticas democráticos, disposto a traçar uma fronteira que efetivamente isole o que e quem representa riscos à democracia.


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