Como a especulação fundiária impulsiona violações ambientais e de direitos humanos no Cerrado brasileiro

Jeff Conant, gerente sênior do Programa Florestal Internacional, Friends of the Earth U.S. Este artigo foi escrito para a edição 124 do boletim semanal do WBO, publicado em 5 de julho de 2024. Para assinar o boletim e receber gratuitamente, insira seu email no campo abaixo.


Não há dúvidas de que a emergência climática é a maior ameaça que o mundo enfrenta hoje, como demonstram os recordes de temperaturas globais e os incêndios florestais, assim como as inundações e os fenômenos meteorológicos extremos que assolam países em todo o mundo, ano a ano. A queima de combustíveis fósseis é a principal causa das emissões climáticas, o que coloca corretamente a questão de uma transição energética global no centro da tomada de decisões ambientais. Mas também é fundamental agir sobre a segunda principal causa das alterações climáticas – o desmatamento.

A perda de ecossistemas florestais é algo que se situa na intersecção de muitas questões: a crise climática, a crise da biodiversidade, o esgotamento da água doce e uma epidemia de violência contra os defensores dos direitos humanos ambientais. Poucos países no mundo incorporam mais estes desafios do que o Brasil, com suas vastas florestas e com um histórico preocupante de conflitos por terras e por recursos naturais. E embora a reflexão sobre as questões ambientais do Brasil possa trazer imediatamente à mente a floresta tropical amazônica, amplamente reverenciada como “o pulmão da terra”, uma região menos conhecida, o vizinho Cerrado, necessita igualmente de atenção.

O Cerrado brasileiro é um bioma globalmente significativo. É a savana com maior biodiversidade do mundo. É o lar de comunidades indígenas, quilombolas (afrodescendentes) e outras comunidades camponesas tradicionais que vivem nessa terra há gerações. É ainda um bioma que abriga 5% das espécies vegetais e animais do mundo. Tragicamente, o Cerrado também é o marco zero para a indústria da soja no Brasil, onde vastas áreas de vegetação nativa foram destruídas e convertidas em plantações industriais de monocultura de soja. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, mais de 10.688 quilômetros quadrados de vegetação nativa do Cerrado foram destruídos em 2022 – um aumento de mais de 25% em relação ao ano anterior –, e os números continuaram a aumentar para mais de 11 mil quilômetros quadrados em 2023 – o primeiro ano em que o desmatamento do Cerrado superou o da Amazônia.

As monoculturas de soja ocupam mais de 4% do território brasileiro, com metade disso no bioma Cerrado, tornando claramente o agronegócio o principal motor do desmatamento desse bioma. Mas numa série de relatórios recentes da Rede Brasileira de Justiça Social e Direitos Humanos e Friends of the Earth dos EUA, mostramos que uma causa mais insidiosa se esconde abaixo da superfície: a especulação financeira em terras.

Como documentado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, o preço da terra usada para a produção de soja no Brasil subiu 127%, em média, nos últimos três anos. Isto alimentou a especulação imobiliária nas áreas onde a indústria da soja está crescendo, como a região do Cerrado nos estados do Piauí e da Bahia. Apesar do fato de muitas empresas, como a Bunge, sediada nos EUA (o maior exportador de soja do Brasil), terem adotado políticas de “desmatamento zero”, tal especulação impulsiona uma tendência complexa que poderíamos chamar de “lavagem agrícola” – e continua a permitir o desmatamento.

“O preço da terra usada para a produção de soja no Brasil subiu 127%, em média, nos últimos três anos”

O processo começa quando pessoas interligadas politicamente, mas corruptas, conspiram com um cartório local para criar um falso título de terra para uma propriedade rural, que é frequentemente reivindicada por comunidades camponesas cujos direitos à terra não são totalmente reconhecidos pelo Estado. Depois, os supostos “donos” expulsam os camponeses, muitas vezes de forma violenta, embora os direitos dos camponeses à terra sejam legalmente garantidos pela Constituição Federal. Os novos “proprietários” então desmatam as terras e, após um curto período de reflexão, oferecem a “nova” fazenda para venda a empreendedores imobiliários rurais, que então a arrendam aos produtores de soja.

As corporações que operam na região incluem a SLC Agrícola (a maior produtora de soja do Brasil), Insolo (anteriormente propriedade da Universidade de Harvard) e Radar/Tellus (uma joint venture da Cosan, uma empresa brasileira de açúcar, e a TIAA, um fundo de aposentadoria dos EUA), além de gigantes do agronegócio sediados nos EUA, como Bunge, Cargill e Archer Daniels Midland.

O processo de “lavagem agrícola” é muitas vezes ainda mais protegido por estruturas empresariais complexas. Por exemplo, uma investigação de 2023 descobriu que a “TIAA e a COSAN usaram uma rede complexa de empresas para fazer suas compras de terras brasileiras”, adquirindo mais de 30.000 hectares de terras de um corretor de imóveis que havia sido “acusado de corrupção e lavagem de dinheiro, [num  esquema em que] em que, aparentemente, juízes brasileiros foram pagos por decisões favoráveis ​​[proferidas a esses grupos] em disputas de terras.”

Face à intensificação das violações ambientais e dos direitos humanos, grupos de defesa como a Friends of the Earth apelam aos governos brasileiro e norte-americano para que controlem a especulação imobiliária e parem a expansão das plantações de soja no Cerrado, com base na bem-sucedida Moratória da Soja na Amazônia. As empresas ativas no Cerrado devem respeitar os direitos fundiários e a autodeterminação das comunidades locais. E, como os povos indígenas são muitas vezes os melhores protetores da terra, das florestas e da biodiversidade, os processos de titulação coletiva devem ser priorizados para proteger os direitos das comunidades indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais neste bioma globalmente importante.

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