Detonando a Amazônia: Buracos de dados e apagamento de povos tradicionais na hidrovia Araguaia-Tocantins
Ronaldo Barros Macena e Eva Moraes são líderes do coletivo de 23 comunidades ribeirinhas do Pedral do Lourenção, no Pará.
por Tiffany M. Higgins*
Nos próximos meses, o Brasil pode começar a detonar o leito de um rio na Amazônia para criar uma hidrovia em escala industrial. A Hidrovia Araguaia-Tocantins, amplamente desconhecida fora do Brasil, pode abranger mais de 3.000 km, trazendo consequências profundas: interrompendo meios de subsistência tradicionais, colocando em risco a segurança alimentar e a biodiversidade, ameaçando a saúde pública, aumentando as emissões de carbono e alterando florestas em territórios indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Especialistas alertam que seu impacto pode rivalizar com o da barragem de Belo Monte, mas, ao contrário de Belo Monte, este projeto avançou silenciosamente, baseado em milhares de páginas de estudos feitos com pouco debate na sociedade civil.
O projeto envolverá dragagem e detonação de rochas em mais de 4.500 km de leito do rio, configurando a mais extensa remodelação de uma bacia hidrográfica na história do Brasil. Mas será que isso vai funcionar? Constatei em minhas pesquisas que nunca foi conduzido nenhum estudo de viabilidade técnica (EVTEA) para avaliar se alguma hidrovia poderia funcionar nesta bacia. A perda de água nos rios Araguaia e Tocantins — documentada e projetada — levanta dúvidas sobre a viabilidade dessa hidrovia.
O DNIT (Departamento de Infraestrutura de Transportes do Brasil) baseou suas conclusões a respeito do volume de água apenas nos níveis monitorados no Rio Tocantins até 2017 — falhando ao não levar em conta as secas severas de 2023-2024, assim como as projeções futuras de escassez de água. Níveis mais baixos do rio aumentam o uso de combustível e as emissões de carbono do transporte hidroviário. Os principais especialistas — incluindo Carlos Souza (MapBiomas Água), José Marengo (CEMADEN), Rodrigo Paiva (Instituto Hidráulico da UFRGS) e Suely Araújo (Observatório do Clima) — concordam que o DNIT deve atualizar seus estudos com vazões de água projetadas mais baixas antes de seguir adiante.
Apesar disso, o DNIT e o agronegócio estão pressionando para que seja emitida uma licença de instalação nos próximos meses e assim dar início a três anos de explosões no Pedral do Lourenço, com impacto em atividades regionais de pesca regional que são cruciais para a sustentação de milhares de pessoas. O labirinto rochoso de 43 km de comprimento e 80 metros de profundidade, formado ao longo de milhões de anos, seria destruído permanentemente — sem certeza que sequer haja certeza de que a hidrovia permanecerá navegável quando os níveis de volume de água do rio caírem. Especialistas insistem que o DNIT deve resolver essas incertezas gritantes antes que as detonações comecem.
O pescador Ronilson Medeiros Neres, do Quilombo Cardoso, em Baião, Pará, descreve como a dragagem e as operações do canal da Hidrovia Araguaia-Tocantins impactariam negativamente a pesca. Vídeo e entrevista: Tiffany M. Higgins.
Além das preocupações relativas à viabilidade do projeto em si, há ainda a questão da ameaça que esse projeto representa para vastas áreas de terras tradicionais, pois se trata de um corredor de expansão da monocultura da soja que acelera a conversão de florestas administradas por pequenos produtores em um modelo de agricultura industrial, exacerbando as emissões de carbono, de acordo com alerta feito por Carlos Souza. Somente no Rio Tocantins, o projeto impactará mais de 35 territórios indígenas, dezenas de comunidades quilombolas e mais de 10 unidades de conservação. A hidrovia inteira cruzaria Mato Grosso, Goiás, Maranhão, Tocantins e Pará, com planos para novas megabarragens para controlar os níveis de água para barcaças.
Uma decisão de 2009 determinou que um projeto dessa magnitude requer estudos abrangentes de impacto ambiental em relação a todos os trechos afetados – estudos esses que deveriam ser submetidos simultaneamente ao Ibama, como órgão licenciador. Mas o DNIT adotou uma estratégia diferente: dividir o projeto em partes menores e negar que se trate de uma hidrovia. Em vez disso, eles alegam estar apenas fazendo “melhorias na navegação” nos 500 km entre Marabá e Barcarena, no Pará, enquanto reciclam estudos de uma tentativa anterior de licenciamento da hidrovia. O DNIT disse recentemente a um juiz que “desistiu” dos planos da hidrovia do Araguaia. No entanto, documentos mostram que o DNIT, desde 2022, é o “responsável” pela construção da Hidrovia Araguaia.
Essa fragmentação é uma “fraude”, disse a ex-diretora do Ibama Suely Araújo. Ao minimizar a escala do projeto, o DNIT manteve o escrutínio público sob controle, impedindo um debate significativo sobre seus impactos.
Uma decisão de 5 de fevereiro sobre o licenciamento alegou falsamente que não existem comunidades ribeirinhas tradicionais no Pedral do Lourenço, o que é comprovadamente falso. Desde 2019, tenho documentado as comunidades ribeirinhas tradicionais que por gerações moram e pescam lá, mantendo profundos laços culturais com o rio. Seu coletivo de 23 comunidades ribeirinhas tem um protocolo de consulta e há muito tempo exigem sua consulta livre, prévia e informada, tal como previsto na lei — um direito que tem sido ignorado.
A decisão também declarou erroneamente que um diagnóstico sobre a atividade pesqueira havia sido conduzido para o Pedral. A professora Cristiane Cunha (UNIFESSPA), que pesquisa a pesca do Pedral, atesta que isso não foi feito. O Ministério Público Federal argumenta que, sem uma avaliação de base sobre o volume de desembarque pesqueiro e a renda dos ribeirinhos, não haverá como medir o impacto de três anos de detonações produzidas sobre seus meios de subsistência. Sem isso, futuras reivindicações legais por danos podem ser impossíveis.
O DNIT busca publicamente licenciar 177 km de dragagem do Rio Tocantins entre Marabá e Barcarena. No entanto, os documentos que analisei sugerem que a verdadeira área de dragagem planejada pelo DNIT pode ser mais de 400% maior do que o que está sendo apresentado para licenciamento, o que levanta questões alarmantes sobre comunidades deixadas de fora das avaliações de impacto.
A abordagem do DNIT depende do Acórdão do TCU que classifica a navegação como tendo impacto ambiental mínimo, supostamente negando a necessidade de licenciamento — uma reivindicação contestada pelo MPF e que a Justiça rejeitou no caso da Hidrovia Paraguai-Paraná. Comunidades em ilhas e margens de rios excluídas dos estudos do DNIT enfrentarão ainda outras consequências, como a erosão das margens do rio, o impacto sobre a pesca, a poluição por resíduos de barcaças e o vazamentos de combustível na água potável.
Essas omissões têm sérias implicações para os direitos humanos, dizem os procuradores federais. Sem uma ação urgente, a hidrovia Araguaia-Tocantins corre o risco de se tornar outro Belo Monte, trazendo danos duradouros às comunidades ribeirinhas.
Antes que as explosões comecem, devem ser abordadas as falhas fundamentais na coleta de dados, nas avaliações de impacto e nos direitos comunitários. O futuro desses ecossistemas fluviais — e desses povos ribeirinhos, quilombolas e indígenas — depende disso.
*Tiffany M. Higgins é uma jornalista investigativa multimídia independente que cobre a Amazônia brasileira. Bolsista Fulbright e beneficiária do Pulitzer Rainforest Journalism Fund, ela vem produzindo reportagens profundas sobre os conflitos de interesses presentes no projeto de transformação do Rio Tocantins em uma hidrovia industrial.
Este artigo foi escrito para a edição 157 do boletim do WBO, de 14 de março de 2025. Para ser assinante e receber gratuitamente, toda semana, notícias e análises como esta, basta inserir seu e-mail no campo indicado.