Evangélicos e eleições num país menos católico

Ana Carolina Evangelista é cientista política, pesquisadora e diretora do ISER, Instituto de Estudos da Religião. Colunista do Meio e da Revista Piauí. Este artigo foi escrito para a edição 126 do boletim semanal do WBO, de 19 de dezembro de 2024. Para ser um assinante do boletim, basta inserir seu e-mail no formulário que está no rodapé do artigo.



A diversificação religiosa no Brasil vem acontecendo acompanhada de um crescimento evangélico continuado. Em 40 anos o percentual de evangélicos quintuplicou e chega atualmente a 31% - num recorte da população acima de 16 anos. Ao mesmo tempo, caiu significativamente o número de católicos e vem crescendo o número dos "sem religião" e de outras religiões. A adesão ao universo evangélico cresceu em todos os estratos sociais, mas é predominante na base da pirâmide social, em áreas urbanas e periféricas. Estamos falando também de uma população em sua maioria de baixa renda, negra e feminina. Foi se formando um cinturão evangélico nas periferias urbanas brasileiras nos últimos quarenta anos. E nessa crescente transição religiosa no Brasil, os evangélicos não se destacaram apenas ​​por sua presença numérica, mas também por seu ativismo de fé. Pesquisas do Pew Research indicam que 60% dos evangélicos frequentam templos e oram diariamente, em comparação com apenas 23% dos católicos e os evangélicos também compartilham mais a sua fé fora dos templos. 

Estamos falando, portanto, de uma população evangélica que cresce e que é mais ativa e pró-ativa em seus hábitos de fé, num país até então de maioria católica não praticante.

Nesse cenário, o crescimento da influência da religião no Estado brasileiro não é um debate novo, mas voltou a ganhar maior visibilidade a partir da eleição, em 2018, do presidente Jair Bolsonaro. Não apenas porque ele teve um apoio histórico de um único segmento religioso - o evangélico - ou porque ele mobilizou explicitamente uma identidade cristã mais ampla na campanha política e no exercício do mandato, mas porque temos testemunhado uma conjunção de forças políticas e pautas ultraconservadoras intimamente ligada a morais religiosas. Mas quais são os novos elementos que observamos na relação de grupos religiosos com a política?

Para responder a essa questão é importante um olhar, por um lado, a partir da articulação de lideranças religiosas e lideranças políticas conservadoras presentes no Estado brasileiro numa articulação que cresce, ganha maior operacionalidade e não se restringe à influência de segmentos evangélicos. Por outro, a partir da transição religiosa no Brasil nas últimas décadas e das nuances da presença aí sim evangélica na sociedade e na política. 

Do ponto de vista da organização institucional dos grupos religiosos nesse país menos católico e mais diverso, esse universo evangélico também tem algumas nuances. A chamada “igreja evangélica brasileira”, apresentada normalmente no singular, não é um conjunto homogêneo e uniforme. É um mosaico de igrejas e grupos com diferenças teológicas, modelos de governança e práticas.  Uma diversidade que não está tão presente na política se analisarmos o perfil dos representantes eleitos para os parlamentos nacional e subnacional, por exemplo.

Esse Brasil, entre aspas, "mais evangélico" também é um Brasil com os maiores índices de homicídios no mundo, com o maior índice de desemprego médio da história recente e com o maior índice de descrença nas instituições do país. Nesse cenário, para a população em geral e também para a parcela da população do segmento evangélico, pautas como segurança pública e acesso à renda passam a estar fortemente no radar. O que diferentes pesquisas do Instituto de Estudos da Religião têm identificado é que os fiéis, e também os parlamentares eleitos do universo evangélico no Brasil, estão conectados a essas demandas e a dinâmicas sociais que não dizem respeito apenas à sua identificação de fé. Ao mesmo tempo são demandas que ganham abordagens mais punitivistas, de controle da ordem, da moral e de cuidado com a família. 

E como isso aparece nas eleições recentes?

Em termos eleitorais, as forças da extrema-direita brasileira percebem esse clamor e se apresentam como o campo que trará alternativas a esse cenário de múltiplas crises, medos e perdas. O que temos visto desde as eleições em 2014, mas mais ativamente desde 2018, é um movimento duplo: o ser político que mobiliza o religioso para se comunicar com novas bases eleitorais e os líderes religiosos que usam o espaço da política institucional para impor a moral do seu segmento como agenda geral. Não se trata apenas, portanto, de determinados grupos religiosos buscando impor a sua moral para a totalidade da sociedade via políticas de Estado, mas é, também, sobre as novas facetas do conservadorismo brasileiro usando a religião para se comunicar com o povo, as classes populares, e criar vínculos simbólicos e afetivos com ele.

Desde 2010 temos observado continuidades e mudanças no espectro das candidaturas que mobilizam identidades religiosas nos processo eleitorais. As candidaturas que adotam o título religioso na urna, por exemplo, têm crescido a cada ciclo eleitoral e esse crescimento se concentra naquelas candidaturas de identidade evangélica. Mas essa identificação no nome, por si só, não tem garantido sucesso eleitoral. Além dessa identificação explícita na urna, tem crescido também em campanhas políticas e exercícios de mandato, a mobilização de uma identidade cristã mais difusa, por vezes acionando linguagens e símbolos bíblicos e, por outras, mobilizando moralidades religiosas de forma ampla. 

Ainda nos ciclos eleitorais, mas olhando para os elementos motivadores do eleitorado, diferentes trabalhos têm identificado que alguns eixos mobilizam mais fortemente essa base considerada religiosa e cristã: a defesa da moral, defesa da família, pelo controle e pela ordem no campo da segurança pública, permeadas por um forte posicionamento antiesquerda. 

Agora, essas não são pautas, nem formas de reagir a demandas sociais, presentes apenas no eleitorado de base religiosa evangélica. Também está presente em eleitores de diferentes matizes conservadoras, com ou sem identificação religiosa. São muitas das pautas vinculadas ao que passamos a chamar de “bolsonarismo”.  Uma identificação não com a figura do presidente Bolsonaro necessariamente, mas com pautas do seu governo e defendidas por suas bases. Isso foi marcante nas eleições em 2018, com transbordamentos para as eleições de prefeitos e governadores em 2020 e em 2022, mesmo com a derrota de Jair Bolsonaro à reeleição. O presidente Bolsonaro seguiu e segue sendo um cabo eleitoral eficiente também por meio da aderência forte às pautas que o elegeram.

Outros elementos chave que seguem fortes na presença de cristãos nas eleições no Brasil são: por um lado, o papel das grandes corporações evangélicas pentecostais e sua real incidência nas eleições para os poderes legislativo e executivo  - Assembleias de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus como forças importantes. Por outro lado, cresce a articulação entre políticos e candidatos evangélicos e católicos. Essa aproximação entre lideranças políticas católicas e evangélicas ultraconservadoras não é nova, mas ganha outros contornos a partir de 2010, com as reações ao III Programa Nacional de Direitos Humanos (o PNDH-3) e suas propostas de avanço no reconhecimento de direitos das mulheres e diversidade sexual no país. Uma aliança que acontece no âmbito da sociedade civil e da política e tem se expandido para outras agendas como educação e segurança pública. Extrapolando a agenda de gênero.

A reação dessas forças políticas de base religiosa a avanços no campo da conquista de direitos não foi o único vetor dessa adesão, também brasileira e não apenas internacional, às forças  políticas e eleitorais da extrema-direita ou "nova" direita. Políticos – religiosos ou não – mobilizaram o religioso e suas formas contemporâneas mais individualizantes e dogmáticas como uma forma de apresentar alternativas que permitissem um retorno da ordem, da previsibilidade, da segurança e da unidade. O que a socióloga Christina Vital da Cunha vai chamar de "retórica da perda" ou a cientista política Flavia Biroli vai analisar na chave da "moralização das incertezas".


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