Lutando por Justiça: Sobre Ovos Baratos e Preocupação Ambiental
Por Tracy Devine Guzmán*
Em 2024, Donald Trump e J.D. Vance capitalizaram o descontentamento do consumidor americano com a inflação e conseguiram converter o sentimento de culpa democrata pelo aumento do preço dos alimentos básicos em um tema popular da cruzada que ambos moveram para derrotar o governo Biden, contradizendo a verdade dos fatos. Nos meses que antecederam a eleição presidencial de 2022 nos EUA, o custo de uma dúzia de ovos se tornou uma grande questão de campanha. Em seu discurso de 19 de julho, na Convenção Nacional Republicana, Trump garantiu a seus seguidores, ao país e ao mundo que reduziria os custos “no primeiro dia” de um novo mandato. Antes de assumir o cargo, em 20 de janeiro de 2025, ele disse à imprensa que havia vencido uma eleição que havia sido sobre “(o custo) dos mantimentos”, e declou: “Vamos reduzir muito esses preços.”
Dada sua firme aversão à saúde pública, ao ambientalismo, à pesquisa revisada por pares e aos dados aferíveis, Trump não percebeu — ou talvez não se importasse em saber — o grau em que suas promessas de campanha não seriam cumpridas, como não estão sendo, de fato. Passadas duas semanas do início de sua segunda administração presidencial, o fracasso em entregar ovos mais baratos decorre não apenas da natureza quixotesca da ordem executiva para “entregar alívio de preços de emergência”, mas, mais perigosamente, da indisposição que ele tem em reconhecer a crise climática ou a correlação bem documentada entre a pecuária industrial e doenças graves — doenças em animais, no meio ambiente e nas pessoas, nos EUA e globalmente. Em 2023, a OMS (Organização Mundial da Saúde), com a qual Trump cortou todos os laços e suspendeu todo o apoio dos EUA, em seu primeiro dia no cargo, constatou que 60% das doenças infecciosas em todo o mundo se originaram do contato humano com animais não humanos — particularmente aqueles criados para alimentação, incluindo ovos.
Que a agricultura animal é prejudicial à saúde dos humanos e do meio ambiente — além dos próprios animais — é notícia velha. Com a notável exceção do militante antivacina e teórico da conspiração Robert Kennedy Jr. – nomeado por Trump para comandar o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA —, todos os políticos que agora orbitam ao redor do presidente americano tendem a ignorar as evidências abundantes dessa correlação nociva. O mesmo ocorre entre a substancial base de fãs brasileiros de Trump, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores do lobby do agronegócio. Abraçando a negação das mudanças climáticas e as conspirações da Covid, e com uma propensão a menosprezar oponentes políticos (particularmente mulheres), somada à antipatia pelas instituições e pelos processos de governança democrática, os dois líderes formaram um vínculo de admiração mútua durante suas respectivas presidências, concomitantes — um relacionamento que continua a moldar o discurso político de Bolsonaro após sua derrota eleitoral em 2022.
A saída relutante de Bolsonaro do cargo, em janeiro de 2023 — quando, como Trump em 2020, ele também tentou impedir a transferência pacífica de poder para seu oponente —, foi marcada pela continuidade do uso das mídias sociais e dos circuitos de influência formal e informal para seguir eletrizando seus apoiadores e o eleitorado brasileiro em geral, contribuindo para que o percentual de eleitores que consideram Lula melhor que Bolsonaro atingisse seu nível mais baixo, em janeiro de 2025. Bolsonaro de fato caracterizou o retorno de Trump ao cargo e a possibilidade de sanções dos EUA contra o governo Lula como uma bênção para seu próprio futuro político e o de seus filhos, que exercem mandatos parlamentares no Congresso brasileiro. Como nos EUA (e em outros lugares), a nostalgia popular pela liderança autoritária no Brasil parece derivar em grande parte de questões de bolso ... como o aumento do custo dos alimentos.
Em 2025, a ligação que empodera os bolsonaristas é a que se dá com parlamentares que representam o bloco ruralista do Congresso Nacional do Brasil, e que representam os interesses fundiários e industriais que os apoiam. Esses legisladores fizeram disso um foco central de seus esforços coletivos desde o início do atual mandato do presidente Lula para criar leis e impulsionar políticas capazes de fortalecer seu próprio controle econômico e político sobre o país às custas de populações e de ecossistemas vulneráveis. Grande parte de seus esforços foi depositada na chamada Tese do Marco Temporal, que coloca os povos indígenas perpetuamente na mira de Bolsonaro, mesmo que, por força de uma condenação na Justiça Eleitoral, ele esteja impedido de ocupar cargo eletivo até 2030. Essa contínua privação de direitos dos povos indígenas, incluindo a incapacidade contínua do Estado de fazer valer os direitos diferenciados de cidadania desses povos, conforme consagrados na Constituição de 1988, tem uma conexão importante com os ovos baratos de Trump e as inúmeras formas de violência imediata e lenta que os tornam possíveis.
A Tese do Marco Temporal é uma doutrina jurídica que restringe as reivindicações de terras indígenas às áreas habitadas ou sob revisão judicial apenas em datas posteriores a 5 de outubro de 1988, dia em que a Constituição pós-ditadura do Brasil foi promulgada. Embora o debate político e judicial sobre essa doutrina esteja em andamento há décadas, o Supremo Tribunal Federal a declarou inconstitucional em setembro de 2023. O Congresso, de orientação ruralista, respondeu por sua vez aprovando a Lei 14.701, que Lula prontamente vetou. O Congresso, então, anulou o veto do presidente, consolidando assim uma forma de governança necropolítica que prioriza os interesses da agroindústria e das elites políticas sobre o bem-estar indígena e ecológico. No ano passado, líderes indígenas, principalmente os membros da a Apib (Articulação dos Povos Indígenas), buscaram incansavelmente desafiar a constitucionalidade do Marco Temporal por meio da litigância nacional e internacional, bem como por meio de estratégias de mobilização popular. Eles argumentaram, de forma resumida, que a lei perpetua o genocídio, o etnocídio e o ecocídio. Com isso, optaram por se afastar dos esforços de conciliação política que estavam sendo orquestrados pelo juíz da Suprema Tribunal Federal Gilmar Mendes, em agosto de 2024, deixando claro que os direitos indígenas não são negociáveis.
Enquanto essas batalhas legais tropeçam, o agronegócio continua a colher os benefícios da legislação sobre o Marco Temporal — bem como a confusão provocada pela legislação — que empoderou os invasores de terras e tornou possível para os principais produtores de gado a inserção ou a consolidação de sua influência em áreas indígenas e em outras áreas protegidas. A JBS do Brasil, por exemplo, a maior produtora de carne bovina do mundo, que comercializa para mais de 150 países, incluindo grandes varejistas nos Estados Unidos, há muito tempo é criticada por comercializa a carne de animais de terras desmatadas ilegalmente — acusações que a empresa às vezes nega. O Greenpeace começou a relatar a prática há mais de 15 anos, e o Ibama multou a empresa em mais de US$ 7,5 milhões desde 2017.
Em outubro de 2024, a JBS também estava entre as quase duas dúzias de empresas frigoríficas multadas pelo Ibama por “lavagem de gado” ilegal, embora a empresa negue as acusações. O fato de a JBS estar envolvida em uma longa lista de escândalos judiciais, incluindo corrupção, suborno, alegações antitruste, greenwashing, trabalho infantil e crueldade animal, além de danos ambientais e de violações dos direitos dos trabalhadores, lança dúvida sobre a negação da empresa.
Em 2024, a procuradora-geral do estado de Nova York, Letitia James, entrou com uma ação judicial contra a JBS USA, alegando que a empresa faz campanhas de marketing baseadas em falsidades, o que ludibria seus consumidores acerca da sustentabilidade de suas operações e de seus produtos.
Como o governo Trump ainda não cumpriu sua promessa de conter a inflação, apesar de sua ânsia de deixar o Acordo de Paris, reverter o New Deal Verde e, dessa forma, “eliminar políticas ‘climáticas’ prejudiciais e coercitivas que aumentam os custos de alimentos e combustíveis”, os povos indígenas, trabalhadores, animais e o meio ambiente implicados na produção de alimentos estão em risco.
No contexto do ressurgimento do trumpismo e de sua cultura política que preza pela impunidade, a JBS capitalizou a “crise dos ovos” dos EUA para entrar no negócio de ovos em janeiro de 2025 com seus olhos nos mercados dos EUA, tendo adquirido uma participação de 50% na Mantiqueira Brasil. Como a maior produtora de ovos da América do Sul, a Mantiqueira construiu uma marca que prioriza “inovação e sustentabilidade”. A combinação da demanda crescente, com o histórico de práticas comerciais questionáveis da JBS, o poder persistente do bolsonarismo e do Marco Temporal, e o desrespeito do governo Trump pela saúde pública e pelo meio ambiente pode frustrar os consumidores que se importam com qualquer uma dessas questões. À medida que a nova fusão na área dos ovos avança no Brasil e a gripe aviária avança nos EUA, os compradores têm de considerar os custos éticos de suas compras, além dos seus custos de bolso.
A agricultura animal, é claro, nunca será boa para os animais — um tópico que fica fora do escopo deste artigo. Mas poderia ser potencialmente menos devastadora para o meio ambiente, menos prejudicial aos povos e terras indígenas, menos corrupta e menos cruel se mais legisladores, formuladores de políticas e consumidores em todo o mundo questionassem a origem de suas compras e responsabilizassem empresas como a JBS, a Mantiqueira e outros produtores. O Regulamento de Desmatamento da União Europeia, que está programado para entrar em vigor no final de 2025, é um pequeno mas significativo passo nessa direção e merece ser imitado nos EUA, no Brasil e em todo o mundo.
Apesar das promessas políticas vazias, não haverá ovos mais baratos que os custos com os quais estivermos dispostos a arcar.
*Tracy Devine Guzmán é professora associada de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Miami.
Este artigo foi escrito para a edição 153 do boletim do WBO, de 7 de fevereiro de 2025. Para ser assinante e receber gratuitamente, toda semana, notícias e análises como esta, basta inserir seu e-mail no campo indicado.