Por que a extrema-direita brasileira não incorpora em suas plataformas a política migratória adotada por Trump?
Por João Carlos Jarochinski Silva*
Passado quase um mês da posse de Donald Trump para seu segundo mandato como presidente dos EUA, observa-se que a questão migratória tem sido central em sua agenda, especialmente no que diz respeito ao controle de ingressos; à deportação de pessoas em situação irregular; e à suspensão do financiamento de ações humanitárias e de organizações vinculadas ao sistema da ONU que atuam na mobilidade humana. Essas medidas, amplamente destacadas pela equipe de comunicação do governo, demonstram a capacidade de Trump em atender aos anseios de uma parcela significativa de sua base eleitoral, garantindo sua fidelização e reforçando sua agenda política.
Nos EUA, a extrema-direita, representada pelo governo Trump, exerce um papel de liderança e influência sobre correntes políticas similares em outros países, como o Brasil. Diante desse cenário, este artigo busca explorar algumas hipóteses para compreender por que a extrema-direita brasileira não tem dado ênfase, em suas plataformas de ação, à reprodução das políticas migratórias atualmente adotadas nos EUA. Esse exercício permite avaliar o real peso da questão migratória no Brasil, especialmente na semana em que se completam sete anos da Operação Acolhida e a o jornal Folha de S. Paulo publicou, na seção Tendências/Debates, o artigo A imigração é boa para o Brasil, assinado por Horacio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski, todos representantes do grande empresariado brasileiro. Esses dois eventos servem como elementos que iremos explorar para tentar responder ao questionamento feito no título.
A Operação Acolhida – iniciada em 2018, ainda no governo Temer – foi desenvolvida a partir das particularidades de Roraima, estado caracterizado por baixa efetividade na prestação de serviços públicos, predominância de servidores federais vinculados aos aparatos de Defesa e Segurança e por ser o único ponto de conexão estrutural entre o Brasil e a Venezuela, através das cidades gêmeas de Pacaraima e Santa Elena de Uairén.
O fluxo migratório venezuelano começou a se intensificar em 2015, com um crescimento constante dos ingressos líquidos entre 2015 e 2019. Essa mobilidade, impulsionada pela profunda crise política, econômica e social que marca a Venezuela desde a morte de Hugo Chávez, transformou o Brasil tanto em destino quanto em território de trânsito para essas pessoas. O impacto desse movimento gerou tensões sociais nos municípios do estado, especialmente em Pacaraima e Boa Vista, que viram um aumento expressivo de suas populações e da demanda por serviços essenciais, como saúde e educação. No entanto, o aspecto mais visível desse fenômeno foi a presença crescente de pessoas vivendo nas ruas dessas cidades.
Como foi comum durante a gestão Temer, as Forças Armadas desempenharam um papel central na formulação da resposta brasileira aos desafios gerados por esse aumento da mobilidade na região. A atuação militar em temas migratórios e humanitários já fazia parte do escopo de interesses das Forças Armadas, como evidenciado pelo Exercício AmazonLog 17. A Acolhida acabou sendo instrumentalizada politicamente, trazendo a crise da Venezuela para o centro do debate nacional. O discurso predominante vinculava a necessidade de impedir que o Brasil seguisse o mesmo caminho da Venezuela, uma retórica que, embora desprovida de fundamento na comparação entre o desenvolvimento e as instituições de ambos os países, conferiu protagonismo político e operacional às Forças Armadas.
Nesse contexto, surge nossa primeira hipótese: o fato de a resposta humanitária ter sido estruturada sob a liderança militar e voltada ao atendimento prioritário de uma população oriunda de um país governado por um regime de esquerda permitiu a continuidade da Operação Acolhida durante o governo Bolsonaro. Isso impediu que segmentos da extrema-direita criticassem a iniciativa, especialmente considerando que o primeiro comandante da operação, general Eduardo Pazuello, posteriormente tornou-se parlamentar vinculado a esse setor político. Sua atuação reforça a defesa da Operação Acolhida e sua relevância na política migratória brasileira. Mesmo no governo Lula, a manutenção da Acolhida não se tornou alvo de críticas por parte da oposição.
A Acolhida também se relaciona com o artigo publicado na Folha de S. Paulo, uma vez que um de seus pilares é a Interiorização de pessoas – muitas delas direcionadas para outras regiões do Brasil por meio de ofertas de emprego. O artigo, assinado por representantes do setor empresarial, destaca aspectos positivos da migração no país, mas sua ênfase recai, sobretudo, na disponibilidade de mão de obra e no empreendedorismo como fatores centrais da argumentação. Nesse contexto, a política de interiorização reflete uma percepção já presente em alguns segmentos empresariais: o processo de envelhecimento da população brasileira e, em um cenário de baixo desemprego, a crescente dificuldade em preencher vagas de trabalho de menor remuneração ou em setores que a população local, especialmente em áreas como a agroindústria e construção civil, tende a evitar.
A demanda do setor empresarial, especialmente em áreas relevantes para o PIB brasileiro, impede que a extrema-direita adote um discurso abertamente contrário à imigração, baseado na defesa da identidade nacional ou na suposta ameaça que os migrantes representariam para o país. Para justificar essa ausência de críticas sem entrar em contradição com suas plataformas ideológicas, recorre-se a uma retórica adaptativa, como a valorização da miscigenação, também presente no artigo da Folha de S. Paulo. No entanto, essa narrativa ignora os recorrentes episódios de racismo e xenofobia que marcam a sociedade brasileira, incluindo aqueles vivenciados pelos próprios migrantes. Fica evidente que o interesse na pauta migratória é essencialmente instrumental, adaptado ao contexto econômico e político. Isso se reflete na ausência de questionamentos significativos dentro desses setores em relação ao tratamento dispensado aos brasileiros deportados pelos EUA ou à suspensão de recursos feitas pelo governo Trump, as quais impactam diretamente os serviços prestados aos venezuelanos no âmbito da Operação Acolhida.
É fundamental avançar na construção de uma política nacional migratória que, de fato, implemente os princípios estabelecidos na Lei de Migração e, sobretudo, assegure recursos adequados para o desenvolvimento dessas ações. O cenário político para 2026 é incerto, e o Congresso, apesar de suas divergências e contradições, ainda se mantém como um espaço onde o debate migratório pode ir além do mero uso eleitoral da pauta, frequentemente instrumentalizada por um nacionalismo excludente.
Diante desse contexto, é essencial que o Executivo assuma um papel mais ativo, pautando o tema e garantindo a implementação das decisões tomadas na II Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (Comigrar-2024). Isso evitaria que essa oportunidade fosse desperdiçada e que deliberações continuassem a serem, em muitos casos, as mesmas discutidas há dez anos, na I Comigrar (2014). Além disso, a inação governamental nesse momento poderia abrir espaço para que a extrema-direita, em um outro contexto e com outros interesses, assumisse o protagonismo na definição das políticas migratórias, representando graves riscos à proteção e ao acesso a direitos dos migrantes no Brasil.
*João Carlos Jarochinski Silva é doutor em Ciências Sociais e pós-doutor pelo Núcleo de Estudos de População (Nepo/Unicamp). Professor do curso de Relações Internacionais e do Mestrado em Sociedade e Fronteiras da UFRR. Pesquisa temáticas relacionadas à mobilidade humana desde 2007.
Este artigo foi escrito para a edição 155 do boletim do WBO, de 21 de fevereiro de 2025. Para ser assinante e receber gratuitamente, toda semana, notícias e análises como esta, basta inserir seu e-mail no campo indicado.