Venezuela e as encruzilhadas da democracia
Pedro Telles é diretor de Programas no Democracy Hub (D-Hub), professor de Advocacy e Transformações Sociais na Escola de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV RI), e senior fellow em Equidade Social e Econômica na London School of Economics and Political Science (LSE). Este artigo foi escrito para a edição 131 do boletim semanal do WBO, de 23 de agosto de 2024. Para ser um assinante do boletim, basta inserir seu e-mail no formulário.
Enquanto Nicolás Maduro esconde as atas da eleição presidencial que ocorreu em 28 de julho, ignorando repetidos apelos de dezenas de governos para que apresente os dados em um formato que permita a verificação dos resultados, são muito contundentes as evidências de uma ampla vitória do seu opositor Edmundo González.
A Tabulação Paralela de Votos AltaVista, uma iniciativa independente da sociedade civil venezuelana para estimar os resultados eleitorais chancelada por acadêmicos renomados, indica que González recebeu 66% dos votos, contra 31% de Maduro – a partir de dados verificáveis e estatisticamente representativos, coletados de urnas em centenas de locais de votação por todo o país.
Esse resultado está alinhado ao que indicam as cópias de 83% das atas eleitorais disponibilizadas publicamente pela oposição, recentemente validadas por um estudo independente de Walter Mebane – pesquisador especialista em detecção de fraude eleitoral que, em 2019, confirmou a vitória de Evo Morales na Bolívia utilizando metodologia semelhante. Os números também são referendados por análises da The Associated Press, do The Washington Post e da plataforma da sociedade civil colombiana Missão de Observação Eleitoral, e batem com a pesquisa de boca de urna da Edison Research.
A situação coloca o governo brasileiro, e também organizações e movimentos da sociedade civil que atuam na pauta da defesa da democracia, diante de uma encruzilhada: reconhecer ou não a vitória de González, apesar de Maduro insistir (contrariando as evidências) que foi vitorioso? De que forma, e em que tempo?
Para o governo, a situação não é simples. A História nos mostra que saídas bem-sucedidas para situações como a da Venezuela geralmente são negociadas com cuidado, levando o líder autoritário em questão e/ou aliados importantes a aceitar uma transição no poder em troca de garantias. Não à toa, temos gestos como o da Colômbia propondo uma anistia a Maduro, e o do Panamá, lhe oferecendo asilo para viabilizar uma transição democrática.
Para desempenhar o importante papel de mediação que vem assumindo diante da crise, e pelo qual é internacionalmente reconhecido, o governo brasileiro precisa se equilibrar sobre uma corda bamba: por um lado, indicar que não acredita nas alegações de vitória de Maduro; por outro, manter canais de diálogo abertos com o regime para avançar nas negociações, o que exige posicionamentos públicos ponderados. Enquanto outros governos à esquerda e à direita na região já adotaram um discurso mais contundente, o Brasil tenta conduzir o próprio Maduro a aceitar a derrota.
Contudo, não há como ficar em cima do muro para sempre. Apesar de afirmarem que o Brasil não reconhecerá a vitória de Maduro sem a apresentação das atas, Lula e Celso Amorim evitam definir um prazo para isso. Mas por ação – reconhecimento explícito da existência de fraude eleitoral e da vitória de González, ou validação explícita do discurso de Maduro – ou por omissão – continuidade da relação com o governo Maduro sem um posicionamento definitivo sobre o pleito – o governo tomará uma posição.
A realidade política da Venezuela impõe um prazo do qual é impossível fugir: o final do atual mandato presidencial, em 09 de janeiro de 2025. Até lá, um posicionamento se consolidará. E daqui até lá, a tendência é que a violência, a repressão a protestos e outras graves violações de direitos humanos sigam escalando, tema que o governo brasileiro ainda evita encarar de frente.
Enquanto o contexto diplomático torna a situação complexa para o governo, a realidade é bastante diferente para organizações e movimentos da sociedade civil que atuam na pauta da defesa da democracia. Não há margem para dúvidas: as evidências da fraude de Maduro e da vitória de González são esmagadoras, bem como as evidências de graves crimes e abusos cometidos pelo atual regime para se manter no poder.
Mesmo quem defende o projeto político do chavismo vem deixando claro que Maduro não o representa mais. Um grupo de ex-ministros de Hugo Chávez e outras figuras de peso da esquerda venezuelana recentemente publicou uma carta aberta repudiando a conduta de Maduro, e pedindo aos governos do Brasil, México e Colômbia que intercedam pelo povo venezuelano. Pepe Mujica, ex-presidente do Uruguai que definiu Chávez em 2014 como “um grande amigo” que teve “gestos enormemente solidários” e “deixou um vazio muito difícil de ser preenchido”, foi categórico sobre Maduro no começo deste ano: “pode chamá-lo de ditador”.
Além de ser um imperativo ético, a condenação a Maduro por parte da sociedade civil brasileira também serve a um objetivo estratégico: dar razões e argumentos ao governo Lula para sustentar a cuidadosa pressão que vem exercendo sobre o regime em seus esforços diplomáticos, e a subida gradual de tom que vem adotando nas últimas semanas.
E tanto governo quanto sociedade civil precisam ter em vista que esta não é uma crise isolada. O autoritarismo está em ascensão por todo o mundo, e isso pode ser observado nitidamente na América Latina: além de Maduro na Venezuela, entre as movimentações mais recentes temos Ortega e Bukele consolidados na Nicarágua e em El Salvador, Milei mantendo sua popularidade na Argentina, e Kast pautando o extremismo no Chile – para além do bolsonarismo ainda pulsante no Brasil. Esta onda autoritária só será freada com respostas firmes e coordenadas por parte das forças democráticas.